Dia 17 – 29 de Agosto
Gratos por Tudo
Acordamos cedo com o chilrear dos passarinhos, aconchegados
no silêncio doce das árvores, com a força telúrica da terra onde estamos
deitados a encher-nos os depósitos de felicidade, mais confortáveis nos nossos colchões de esponja que se estivéssemos numa
cama numa estalagem da vila.
Esteve a chover de noite, por isso decidimos deixar a tenda
a secar debaixo do sol ténue que espreguiça os seus raios por entre os ramos
das árvores e nos aquece levemente com o seu Bom Dia.
Este cenário define a minha escolha do dia: absorvo a
graciosidade da existência com cada respiração, conforme vivo em total rendição
à minha Essência.
Saint-Jean-Pied-de-Port é uma histórica vila de passagem de
peregrinos, bem referenciada no caminho de Santiago. É por isso que há lojas
com haveres necessários para uma demanda tão longa – boas e robustas botas para
caminheiros, capas para a chuva, cantis, mochilas, bengalas de suporte para
tornar o trajeto mais ligeiro… enfim, tudo o que alguém que quer caminhar cerca
de 800 quilómetros, se este for o ponto de partida, pode necessitar.
Este é, de facto, o ponto mais popular
para quem inicia a senda a partir de França. Esta é também tida como a última
paragem antes da árdua passagem pelas montanhas dos Pirinéus e faz parte do
acervo da UNESCO enquanto Património da Humanidade.
A vila é pequena mas muito bem conservada. Tem o encanto de
uma maquete toda arrumadinha, sem mácula que se aponte.
Estas vilas típicas fazem-me sempre lembrar as casas de
bonecas que me faziam acercar das montras das lojas e adorar visitar museus dos
brinquedos quando era miúda.
Ao passearmos pelas ruas damos com um painel que explica a
história por detrás da romaria a Santiago de Compostela.
Reza a história que Tiago o Grande foi um dos primeiros
apóstolos de Jesus e pereceu em Jerusalém no ano 44 DC. Diz-se que foi
decapitado pelo rei Herodes Agripa que se opunha à nova religião. Diz a lenda
que dois discípulos trouxeram o seu corpo de volta para a Galiza de barco e que
o seu túmulo foi descoberto por um ermita que foi conduzindo a esse lugar por
uma estrela no século 9. Nesse tempo era comum a adoração a relíquias e o
lugar depressa se tornou num grande centro de peregrinação, comparável com
Jerusalém e Roma. Campus Stellae ou “Campo das Estrelas” depressa se tornou
Santiago de Compostela e a igreja católica implementou a construção de um
templo romanesco que viria a ser uma das mais imponentes catedrais góticas da
Europa.
Ora, perdoem-me os crentes, mas criar a partir de uma lenda
tamanha azáfama, em que se fazem promessas a um Santo cujas raízes são pouco
claras e se espera que ao cabo de um sacrifício de centenas de quilómetros árduos o
desejo pedido seja “concedido” não faz qualquer sentido. Primeiro porque não
são os Santos, Anjos e nem mesmo o que se crê ser Deus que vêm salvar-nos das
nossas amarguras, pois elas fazem parte do trilho humano na Terra e são
precisamente o que nos permite ter o potencial para despertar do nosso sono
ignorante de que somos impotentes perante as circunstâncias da vida.
É certo que muitas vezes as circunstâncias estão para além
do nosso controlo e que não as podemos mudar, mas podemos mudar a forma como
olhamos para elas e o que aprendemos com elas, e mais importante que tudo,
podemos escolher o que queremos mesmo nas nossas vidas daí para a frente. O grande senão é que
não podemos escolher por mais ninguém – o livre arbítrio assiste a todos e a nenhum
de nós cabe a opção de usar o livre arbítrio do outro como nosso. Sendo assim,
grande parte das promessas que se fazem e que implicam a “salvação” de outros
(filhos, maridos e mulheres, tios, primos… etc) colidem em si mesmas com o
livre arbítrio de cada um e por mais bem intencionadas que sejam, não deixam de
ser um desrespeito pelo poder de escolha alheio.
Em segundo lugar, não é o nosso sacrifício que vai fazer com
que Santos, Anjos ou Deus tenham pena de nós e nos concedam o “pedido”. Que Ser
Pura e Plenamente Amoroso requereria o sofrimento de qualquer ser senciente
para obter provas da sua beatitude e assim conceder-lhe algo? Isso seria chantagem, nua e crua - "se fizeres isto, dou-te aquilo". É um conceito estritamente humano e não pertence à consciência expandida onde não há requisitos desta natureza manipuladora.
Ainda assim, para quem faz O Caminho como uma demanda
espiritual, uma descoberta de si mesmo ao longo de cada passo, enfrentando os
seus próprios fantasmas, incluindo a solidão, o medo do desconhecido e o
desafio de ultrapassar adversidades e confiar que tudo é possível e que se
chegará à meta desde que entregue ao coração – a Deus em nós – então será com
toda a certeza uma experiência muito enriquecedora e iluminada em que ninguém
retorna igual ao que foi.
Mas se é este um dos grandes propósitos, então há muitas
formas de o fazer, sendo O Caminho de Santiago apenas um dos muitos caminhos,
este já bem batido e até mapeado para facilitar a demanda.
Ora até esta nossa viagem é uma peregrinação dessa natureza,
em que viajamos entregues à nossa Essência e descobrimos momento a momento como
é viver em confiança total, sem planos definidos mas sempre entregues ao coração,
em respeito pela energia que nos serve, poupando recursos de formas criativas e
inexploradas, aliando o sentir ao pensar e experienciando na prática a
liberdade de Ser uma respiração de cada vez.
Sinto-me feliz por poder permitir-me esta liberdade e saber
que tudo está bem com toda a criação e que cada um virá ao encontro do que
procura, independentemente da forma que escolha para o fazer.
Ao fim e ao cabo
Deus reside e sempre residiu em cada um de nós e o Lar que tanto buscamos lá
fora está e sempre esteve, dentro de nós, no nosso cerne incorruptível e imaculado.
Depois de um agradável passeio pela vila, voltamos para o
camping para tomar o pequeno almoço, desmontar a tenda e seguir para Espanha.
As autocaravanas já se foram quase todas embora e a nossa é
a única tenda ali. O senhor, dono do terreno, cumprimenta-nos e agradecemos-lhe
a estada neste lugar de paz.
À saída de Saint-Jean-Pied-de-Port o Pedro decide ir comprar
um queijo de ovelha diretamente do produtor e batemos à porta de uma casa particular
onde nos atende uma senhora que nos mostra orgulhosamente as fotografias do
armazém onde o filho faz estes deliciosos queijos.
A senhora corta um bom pedaço de um queijo enorme que deve
ter uns 10 quilos e saímos sorridentes com a compra campestre, sabendo que
parte será comido no caminho, ainda antes de poder ser oferecido à família aquando
da chegada já não muito distante.
Um pouco mais à frente entramos na aldeia de Espelette. É
dia de mercado e mesmo à beira da estrada há uma casa com um grande título cá
fora: Chocolaterie Antton. Hum! Acho que temos que parar…
Ao entrarmos vemos um grande grupo de turistas que pelos
vistos veio aqui numa visita guiada, pelo que este lugar parece ser um ponto de
paragem obrigatória, tal como sentimos.
É uma fábrica artesanal de chocolate e esta é afinal de
contas um importante região de produção de pimenta de uma variedade que foi
batizada com o nome da localidade: Espelette.
O cheiro intenso a chocolate entra-nos pelas narinas adentro,
produzindo uma espécie de delírio prazeroso. Afinal nem é preciso comê-lo para
ter efeito nas hormonas do bem-estar!
Decidimos comprar um frasco de pasta de chocolate com avelãs
que tem um sabor absolutamente divinal e uma barra de chocolate com pimenta de
Espelette que também provámos na loja e aprovámos.
Esta barra de chocolate passa a ser a nossa sobremesa, um
quadradinho de cada vez, bem degustado e recebido pelo nosso palato com uma
sinfonia de requintado prazer.
Estamos mesmo mesmo à beirinha de Espanha e fazemos uma última paragem em França, em Saint Jean de Luz que nos foi recomendado visitar, antes de passar a fronteira
invisível que separa os 2 países a que pertence a mesma região do País Basco. Ou
seja, a região é a mesma, mas estende-se ao longo de dois países.
Esta coisa das fronteiras sempre me intrigou e por outro
lado não deixa de ser um apontamento cómico sobre como tentamos definir limites
no que é em si mesmo ilimitável. Mas a bem da boa governança entende-se que o
estabelecimento destas orlas imaginárias que separam uma área política de outra
possam facilitar o governo das massas de gente que habitam cada território.
Em Saint Jean de Luz paramos só à beira mar antes de seguir adiante.
A cidade costeira de San Sebastian é a primeira paragem em
Espanha. Chove a cântaros e daí para a frente o tempo começa a piorar de tal maneira que há momentos em que não se consegue ver mais que uns 2 ou 3 metros à frente.
Com a chuva intensa a dificultar a visibilidade e o dia escuro decidimos procurar um
lugar para pernoitar, desta vez num hotel ou alojamento local. Seguimos umas
placas que indicam esta última opção e chegamos a uma quinta com várias casas,
todas em pedra, muito bonitas e bem arranjadas.
Batemos a uma porta. Ninguém atende.
Depois a outra e aparece uma jovem para a nossa idade que nos indica que a sua
mãe está na casa onde batemos primeiro. Voltamos lá e uma senhora muito simpática
mostra-nos o quarto que custa 45€ e tem casa de banho privativa. Não tem
multibanco pelo que vamos ter que ir à vila mais próxima levantar dinheiro.
Hoje o dia de viagem terminou cedo e sabe bem poder ficar na
cama a ler e ouvir a chuva a cair lá fora.
Deitamo-nos cedo, gratos por tudo.
isto me acordou: "absorvo a graciosidade da existência com cada respiração, conforme vivo em total rendição à minha Essência."
ResponderEliminarobrigado pela dica
Muito obrigada pelo seu feedback e grata também por poder viver esta graciosidade e partilhá-la. Um forte abraço Alegre
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