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segunda-feira, 31 de outubro de 2022

A Fénix

Mil vidas e mais, tinha ela vivido. Perdera o conto às suas metamorfoses em cinzas e às suas ascensões em chamas. Sem fim eram os seus suspiros de transmutação e ilimitadas eram as suas cores. Tal era a sua natureza. Algo que tinha finalmente deixado de negar.

Houvera um tempo em que ela temia as cinzas bem como as chamas - em que ela tentara evitar a sua inevitabilidade. Zangava-se com este inexorável destino, sentira-se frustrada com a dor - porque tinha que doer? …


Até que se dera conta que não tinha que ser assim. Não tinha que doer! Estávamos num dia ventoso em que ela sentia o calafrio de outubro a instalar-se em si e era certo que a transformação se adivinhava, mais uma vez no seu horizonte. Estava sentada num promontório à entrada de uma caverna, no pico de uma montanha para a qual ela gostava de voar sempre que sentia a mudança a aproximar-se. Sentada em contemplação. Sem um único pensamento que se fizesse ouvir. Um quieto silêncio preenchia-a desde o seu âmago e transbordava o “nada”. Um senso de “nada” que era estranho e ao mesmo tempo confortável. Deixou-se assim ficar. Sem o empurrar dali. Aquietando-se mais e mais na sua paz. 


E foi aí mesmo, nesse momento, que aquilo a atingiu! Chega! Já chega. Chega de evitar. De resistir. Não. Chegara o momento em que não mais se negaria. 


O seu corpo alado encheu-se de alívio e uma sorriso beijou-lhe os olhos, à medida que a aceitação tomou o lugar da negação e ela se deu conta que sempre tivera escolha. Claramente. Diante de si. Sempre lhe fora dada a hipótese de escolher. Mas enquanto escolhia lutar contra a sua natureza, essa fora a sua experiência e nada mais poderia ser permitido. Todavia, em apenas alguns instantes de “nada” abrira-se o caminho para uma outra possibilidade geralmente invisível aos olhos ruidosos da insurgência. 


Agora sentia-se a balançar à beira da antecipação, conforme a sua implosão iminente no “nada” das suas cinzas se fazia sentir de forma cada vez mais tangível.


Finalmente segura. Assim estava ela. Apenas no seu ficar. Sem intenção de procurar ou esperar qualquer outro desfecho. Grata por não saber mais da luta que outrora travara em si. 


Suave. Uma fluida dissolução. Nada a temer. Era a sua natureza. Ser a Fénix. Era a sua dádiva.


E de repente a que fora deixou de estar aqui e as cinzas encontraram-se com o vento de outono que as levou consigo.


Até que chispas de fogo cintilante começaram a infundir o ar com cor, criando o arco-íris que daria à luz a nova Fénix. Saberia quem era, não pelas amarras do passado que lutara por não ser, mas pelo agora que recebera e no qual fora aceite, através do coração que se abre em permissão serena.


Cada pena formando uma centelha da luz do arco-íris, as cores imiscuíndo-se entre si, formando novas e desconhecidas possibilidades. E eis que ela era de novo, sem no entanto ser quem fora. Dançando nos laivos de riso que a vida emanava para celebrá-la de retorno a Casa. Em Casa na sua verdadeira Natureza. Pronta para descobrir os agoras ainda não vividos que as suas asas criavam a cada batida. Enamorada. Imersa no amor de tudo o que ela já fora, era agora e viria a ser ainda, renovada na absoluta aceitação do que É. 




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