Devo ter vindo com um defeito no meu sistema de esquecimento intrínseco, porque desde muito pequena que a sensação de imortalidade se vislumbrava claríssima para mim. Não lhe tinha qualquer dúvida.
E ainda assim tudo à minha volta provava-me equivocada. Ou pelo menos assim parecia.
Destarte, essa certeza foi-se desvanecendo gradualmente, até que pelos meus 12 anos já havia sido eliminada por completo da minha consciência.
Foi então que comecei a querer morrer de quando em vez. Mergulhava num profundo e obscuro desespero relativo à dureza da vida, às coisas que as pessoas faziam umas às outras, à falta de senso de tudo ao meu redor e não dava conta de encontrar as respostas que pudessem de algum modo justificar esse sofrimento que observava e sentia, por isso, com relativa frequência, chorava pela noite dentro ou em qualquer outra ocasião do dia em que me fechasse no meu quarto, querendo apenas desaparecer, pedindo para ser levada daqui. Mas nunca acontecia. O que acontecia era um senso de amor a lavar-me a alma, um abraço terno e cálido reconfortando-me e assegurando-me que estava no lugar certo, que ficaria bem e que um dia compreenderia e ajudaria muitos outros a compreender também.
Ainda que não conseguisse assimilar a parte do compreender e de vir a ter qualquer tipo de papel significativo nisso, conseguia sentir o amor, a companhia, o suporte e o aconchego dessa doce voz que sentia em mim, o calor reconfortante, como se as lágrimas fossem literalmente limpas do meu rosto por uma leveza tão gentil que me fazia sentir melhor, sem no entanto aceitar totalmente o que se passava comigo, mas pelo menos suficientemente capaz de continuar esta viagem.
Nunca cheguei a tentar levar a cabo estes desejos de morte, mas o pensamento da sua possibilidade salvadora acompanhou-me até meados dos meus 30 anos como se de uma saída de emergência se tratasse, uma possibilidade de haver alguma forma de não ter que ficar aqui, pelo menos quando as coisas ficavam demasiado enevoadas para mim.
Até que um dia dei-me conta que se tratava apenas de um mecanismo de proteção. Algo que tinha implementado como último recurso, para o caso de as coisas ficarem demasiado pegajosas aqui em baixo. Isto deu-se pela mesma altura em que estava a conectar-me mais fortemente que nunca com a minha Essência e a escolher verdadeiramente render a minha perspetiva limitada de esforço e dor à minha sábia Alma, para que Ela pudesse mostrar-me uma nova visão, uma nova paisagem de possibilidades. Acabei por fazer as pazes com estar aqui sem ter mais que entreter pensamentos de suicídio ou outra qualquer forma rápida de sair do que parecia ser uma prisão física - esta coisa chamada de vida.
Fiquei ciente que este é o lugar onde foi criada a separação e assim também o lugar onde ela se dissolve. Em mais nenhum outro lugar. Aqui.
Dei um beijo de despedida a todos meus desejos de morte e tomei responsabilidade total por abraçar a vida e descobrir o que residia para lá da montanha da luta ou fuga.
O senso de imortalidade começou a crescer no meu coração, e conforme recolhia vida após vida de retorno ao lago da minha Essência, o lugar de onde originalmente nascera, atingiu-me a noção que afinal de contas nunca tinha realmente morrido! Esta coisa que dá pelo nome de morrer tinha parecido algo muito real. Ocorrera de tantas formas distintas, na sua maioria mais dolorosas do que o contrário, mas ainda assim estou aqui! Perpetuando-me. Consciência imortal.
E soube então que mesmo que não tivesse tido acesso a esta experiência das minhas vidas passadas e dos meus potenciais futuros, ainda assim permaneceria imortal. Desapareceria sob a forma do Eu conhecido como Humano, mas dissolver-me-ía num trilião de partículas flutuando no ar, nos leitos dos rios e oceanos, crescendo como as ervas dos campos, as flores e as árvores e sendo comida pelos animais e insetos, apenas para me tornar uma parte dos seus átomos também. A força vital a mudar de roupagens mas perpetuando-se sem fim, mesmo na vastidão do espaço, à medida que os átomos que haviam sido antes a minha fiscalidade navegavam através dos éteres, misturando-se no pó das estrelas e no solo dos planetas, cometas, meteoros e asteroides. E para além dos átomos, sou espaço. Principalmente e acima de tudo espaço livre e irrestrito. Vazio. É este o caldo de consciência que define toda a forma que venha a ter.
Tenho em mim uma certeza tão inegável da vida para além do que se percebe ser a morte, que apenas consigo sentir a eternidade como uma vastidão infinita onde a existência nada e dança para sempre. Ah e inspira-me.
Inspira-me o chilrear dos pássaros no meu jardim e o restolhar das folhas num dia ventoso.
Inspira-me o riso de um bebé e o choro da coruja na quietude da noite, conforme as gotas de chuva se precipitam no telhado e caem sobre o pátio.
Inspira-me o correr da água por entre as fissuras das montanhas e o brilho suave da primeira luz matutina a espelhar-se nas gotas de orvalho que beijam as pétalas das rosas.
Inspira-me a areia reluzente no fundo do mar, com as suas ondas espumosas a rolar à superfície, enquanto o sol se põe no horizonte, colorindo o céu de carmesim, púrpura, alaranjado e amarelo.
Inspira-me o gelo iluminado pelo luar no silêncio invernoso dos ramos despidos, e o retumbante rugir do trovejo das tempestades.
Inspiram-me as sementes que planto a emergir da terra e as galinhas a cacarejar a sua canção alegre do choco do ovo.
Inspira-me a erva a crescer e a secar depois de cortada, voltando a ser terra de novo.
Inspiram-me os milagres a que assisto todos os dias, à medida que presencio pessoas como tu e eu, dos 4 cantos do mundo e de qualquer cultura ou credo, a darem-se conta da sua sabedoria e a seguirem o seu coração para criarem vidas verdadeiramente incríveis, plenas de alegria, encanto e liberdade onde as lágrimas não são mais banidas.
Inspira-me a Nova Terra que vivo todos os dias, onde há a simplicidade do acordar de manhã numa cama quentinha e confortável, numa casa maravilhosa que estou profundamente grata que alguém tenha sabido construir, a facilidade de não estar presa a horários fixos e regras pré-feitas, planos imutáveis e a um caminho definido.
Inspira-me tudo o que ainda tenho por descobrir, e tudo o que já passou.
Inspira-me estar num corpo físico extraordinário através do qual posso experienciar o quente o e frio, as fragrâncias saborosas que coloram o meu mundo e o tornam numa rapsódia deliciosa de regozijo, mesmo no simples colher de folhas de hortelã para um chá ou de alguns limões para um sumo. A força deste corpo, a sua resiliência e flexibilidade, a sua inteligência e adaptabilidade, as suas contínuas transformações e a sua subtil comunicação, tudo isto me inspira, bem como a minha Alma na sua compaixão incondicional, a sabedoria clara que está simplesmente aqui, disponível a qualquer momento. Esta Presença. Permanente. Clara.
Inspiras-me tu. A tua magnífica beleza. A tua graciosidade e a possibilidade de dançar com o teu sorriso e sentar-me com as tuas lágrimas, como com as minhas.
Inspiram-me todos nós. Todas as quase impossíveis possibilidades que esta fiscalidade permite e a fonte criativa que cada um traz adiante para o campo visível da nossa perceção.
Inspira-me a forma rápida e exímia como a energia me serve e observar como reage aos meus pensamentos, palavras e ações.
Inspiram-me todas as coisas que a Natureza desta Terra providencia, desde os seres sencientes até às rochas deste planeta e o próprio vazio escuro no qual rodopia, bem como todos os outros planetas e universos, suspensos no nada, prometendo tanto, mas tanto mais do que conseguimos sequer conceber.
Sim! Estou e sou inspirada! Aqui mesmo. Neste preciso agora. O único momento que é realmente meu. Sim. Escolhi sucumbir para dentro da inspiração em si mesma e ser o veículo da paixão. A paixão da vida eterna, completamente preenchida para além das necessidades e do querer. Apenas isto. Eu Sou. E ainda assim, não sou nada.
Expirando em cada respiração. Inspirando a eternidade.
Texto por T. C. Aeelah
Foto por Movoyagee - Pexels
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