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sexta-feira, 11 de julho de 2025

PT - 3 Décadas de Sabedoria Inspirada III: Nos Rasgos do Vento


Nos Rasgos do Vento

Parou uns instates à beira da estada. Olhou à sua volta. Havia um descampado imenso, congelado na fria solidão da noite. Não se via vivalma. Rebuscou a escuridão. Incrédulo. 

Não sabia como ali chegara. Precipitara-se de passos largos e desconcertados. Precipitara—se pelo desconhecido, sempre ávido de um novo horizonte Sem nunca parar, sem nunca pensar… Até que, como que por magia, se encontrara ali, mergulhado na aridez do nada.

Havia alturas em que nem ele próprio se sentia capaz de discernir de quem era aquela sombra que se esbatia no solo amargo. Processara-se no seu ser uma metamorfose imensa que não conseguirá acompanhar. 

De longe a longe ouvia sons indistintos e sentia figuras zelosas em seu redor. Não lhe interessavam os seus julgamentos.

Voara nos rasgos do vento, qual papel perdido na multidão de tantos outros. 

Tentava concentrar-se naqueles poucos instantes à beira da estrada. Todavia, o novelo da sua memória dificilmente se desenrolava, dilacerado por retalhos irreconhecíveis.

Não podia culpar ninguém, mas sentia que o mundo o enganara. Apetecia-lhe fugir de dentro de si e desaparecer, deixando o corpo ali. Vazio. 

Sentia-se sujo. Desprezível… e velho. Tão velho como o céu e a terra- Velho como a dor. 

Envolvia-o uma solidão forte e constante. Talvez um lugar comum para o resto dos seus dias.

Vivera uma mentira e sentia-se incapaz de abarcá-la na sua totalidade inconstante.

Mas como? Como acontecera?


💙💙💙


“Isso seria a última coisa que eu faria”, e fiz, realmente, a última coisa. Os copos. Os charros. Não me chegaram. Tinha que conhecer a última fronteira, tão terrivelmente sedutora, mais gulosa que o mel e destruidora. Pior que qualquer mulher. 

Há gajos que não gostam de seringas. Talvez ninguém goste. Mas torna-se um paradoxo constante. 

Eu tinha que saber como era. Achei-me diferente de todos os outros. Forte. Inabalável. Que mal existia num simples chuto? Um só? O primeiro. O único. 

Mal sabia eu que n\ao há o único.

Já não há heróis. Nunca houve. Heróis são os deuses. Os sonhos. 

De momento, custa-me sonhar. 

O sussurro ensurdecido da derrota destrói-me por dentro, por fora. Já não sei quem sou. 

Deitei tudo a perder. É engraçado. Descobri coisas do mundo, de mim, do amor.

Não adianta mais enganar-me com a minha capa de ironia e frieza exterior. Sou um sentimentalista. Um romântico. 

Não gosto - detesto render-me às minhas fraquezas… pedir ajuda, revelar-me. Os outros não precisavam de saber como sou vulnerável, dissecar-me como se fosse um bichinho desconhecido. Criticar-me. O que sabem eles?

Eles n\ao sabem nada! Nada. Não entendem. Nem eu próprio me sinto capaz disso. 

Ela não teve culpa, não importa o que digam. Ela não teve culpa. 

Fora viciada. É certo. Mas eu também tenho vontade própria. Fui eu quem a enterrou de novo, a mim e a ela. Fui eu que comprei. Eu é que quis saber que cores tinha o céu. Acabei por acender um rastilho de dor

Ainda por cima soube que tinha um puto meu dentro de si. Tinha que se desfazer dele. Não havia dinheiro. Eu já tinha feito burrices amais. 

Nunca pensei que o meu pai me aparasse tantos golpes. Sempre achei que ele tinha uma predileção pela minha irmã. Afinal também me ama.

Cheguei a roubar-lhe dinheiro. Não sei dizer como ou porquê, mas apesar de eu ter sido um baldas na escola, de me ter metido nos copos e na droga, de não ter aproveitado as oportunidades de futuro que me ofereceu, ele soube ser pai. Soube perdoar-me.

Não posso imaginar a mágoa que lhe causei, a ele e à minha querida mãe. Foi erro atrás de erro que eu não fui capaz de evitar. Amo-vos. Desculpem-me. Do fundo do vosso coração, desculpem-me. 

Tinha que partir. Afastar-me dela. Recomeçar tudo de novo. Nós os dois juntos seríamos a desgraça total. 

Eu amava-a. Amei-a. Amo-a. Por mais que digam “ela não presta”, eu amor, amei. Vivemos coisas juntos que ninguém sequer imagina. 

Completávamo-nos. E destruíamo-nos. Nunca a esquecerei. Foi, até hoje, a grande mulher da minha vida. 

Nessas coisas não se escolhe. O amor veio, sorrateiro, e roubou-me um pedaço da alma. Irrecuperável. 

Trouxe comigo fotografias e cartas de amor. Não posso apagá-la para sempre. 

Soube que se tinha desenrascado. Convenceu um outro qualquer que o filho era dele, e ele pagou-lhe o aborto. Sempre foi esperta. Melhor para ela. Desejo-lhe sorte na vida. Acho que disso ela mal conhece o cheiro. 

É bom saber que tenho amigos. Bons amigos. Se não fosse isso, perder-me-ia por completo. 

Quando para aqui vim estava doente. Doente da mente e do corpo. Parecia um velho, abandonado pelos cantos, um ratinho assustado.

Consegui arranjar uma cirrose, e hepatite e uma ferida sangrenta na alma. 

Senta-me afogado. Quase morto. Dentro de um poço sem fundo nem topo. Abismal. Tentei lutar para manter a cabeça no cimo da água. Mas como era tão mais fácil deixar-me afundar…

A dor anestesia-nos. Ficava apático, A observar o vazio. Sem nada na cabeça. Em busca do paraíso perdido. Era um transe fatal. 

Nunca chorei tanto na minha vida, que até é curta. Sinto-me longe. Tão longe dos meus 21 anos. 

Caminhava sobre um gelo frio que se quebrava a cada passo… Caía… caía… caía… Dêem-me uma mão, por favor. Não aguento cair mais.

As minhas forças esgotaram-se no simples acto de existir. 

Acabei por conseguir agarrar uma mão e levantar-me devagar. Muito devagar. 

Agora trabalho que nem um cão. Ao menos não tenho tempo para pensar. 

Aprendi a rir novamente. Consigo sentir um sabor suave e tranquilo, uma inefável alegria de viver. 

Conheço chão que piso. Acho que estou a caminho da verdade.

Mas tenho guardada, bem no fundo do meu ser, uma caixinha cheia de marcas, feridas e dor. 

Ficará comigo para sempre. Eu sei- Cresci. 



1993/ Melissa O'Neill

                                                     


Esta peça foi escrita tinha eu os meus 21 anos (1993), em homenagem a um querido amigo que morreu de overdose. Decidi honrá-lo com um final mais feliz nests história. 



Imagem gerada para esta história por IA




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