Felicidade a sério
"Felicidade", disse ela de si para consigo. "O que é, afinal?"
Ao longo de toda a sua vida, lutara com o que parecia ou não apropriado em cada contexto da sua paisagem algo mutável, tentando encaixar-se o melhor que podia de acordo com o que acreditava que os outros apreciariam.
Artemisia sempre pensara que isso era felicidade - ser apreciada. No entanto, também nunca se tinha sentido realmente realizada.
O que se passava agora era que tinha chegado a um ponto de viragem. Um daqueles grandes momentos em que nos questionamos sobre as nossas prioridades e fazemos uma pausa para refletir sobre o caminho percorrido até então.
O ponto de viragem tinha sido provocado por uma série de desilusões. Primeiro, uma separação dolorosa do namorado de 10 anos, depois um mal-entendido com uma amiga que levou a mais mal-entendidos com outras amigas e amigos, a que se juntou uma sensação geral de fracasso no trabalho, associada a constantes crises de infeção na garganta e dores nas articulações.
Artemísia sentia-se bastante infeliz.
Até agora, a sua vida não tinha sido particularmente difícil. A sua família era normal, sem grandes dramas, a sua educação era bastante aceitável e nunca tinha tido problemas em tirar boas notas enquanto andava na escola. O seu trabalho era estável e não tinha dificuldades financeiras dignas de nota. Não era rica, mas o que ganhava era suficiente para as suas despesas e isso bastava-lhe.
Artemísia nunca fora de se queixar. Como é que podia queixar-se? A olho nu, ela tinha tudo.
Mas por dentro... não era assim tão pacífico. Passara a vida a lutar para nunca chamar à atenção pelas razões erradas. Trabalhara duro. Sempre. Desde que se lembrava. Mesmo quando era apenas uma menina. Trabalhara arduamente para que ninguém ficasse zangado com ela.
Como é que uma criança tão pequena... devia ter cerca de 2 anos na sua visão interna, enquanto olhava para trás, para a menina que se esforçava por ficar fora do alcance do perigo e ser bem comportada.
Haveria vozes altas a gritar com ela e uma mão dura na cara e no rabo se ela se enganasse. E a pequena Artemísia não fazia ideia do que era errado, mas o facto de ter que o saber à força tornou-o claro e cristalino.
Nada de correr, sobretudo nada de risos descontrolados. Nada de fazer experiências com as belas jóias da mamã. Nada disto... e nada daquilo... e sê uma boa menina, fica quieta, calada. Mais tarde, na escola, aprende bem a lição para não seres repreendida por seres burra e, acima de tudo, nunca lhes peças em casa que te expliquem qualquer trabalho escolar, porque eles vão começar por te fazer sentir um completo fracasso antes mesmo de entrarem na matéria propriamente dita.
Para Artemísia, isto era normal. Nunca tinha conhecido outra forma. Tinha desenvolvido uma enorme raiva silenciosa para manter a coragem e o medo tinha-se tornado um amigo íntimo, mantendo-a segura e alerta - com cuidado para não pisar o risco.
Por vezes, uma tristeza profunda surgia do nada e, na maior parte das vezes, ela não fazia ideia de como tinha aparecido.
Mas agora, ao olhar para a menina, apercebia-se de que, por vezes, se tinha sentido tão sozinha - sozinha no seu tempo de criança e no seu espaço de brincadeira, onde nenhum adulto ao seu redor tinha sido capaz de se juntar a ela, fazendo-a sentir-se estranhamente inadequada. E isso provocara tantas lágrimas. Até que todas elas secaram e o seu coração ficou entorpecido com estes sentimentos de não pertença… e a tristeza adormecera.
Hmmm... Talvez ela não tivesse tido exatamente uma vida normal em casa. Artemísia questionava-se.
De certeza que deve haver maneiras diferentes de crescer.
Ela era definitivamente um robô de sucesso. E num mundo cheio deles, tornava-se difícil discernir se havia mais alguma coisa para ser. Um robô de sucesso tem sempre mais objetivos, faz as coisas bem feitas e nunca pensa em tirar tempo para cuidar de si próprio, para o lazer e para descontrair. Isso é para os preguiçosos que ou são abençoados por serem ricos desde o início ou vivem de fundos e pensões. Foi essa a lição que Artemisia aprendeu. E tinha sido a melhor aluna da sua turma nessa aprendizagem. Por isso, tinha-se esforçado e conseguido tornar-se num robô de sucesso.
O problema é que era sempre apenas por alguns instantes. Cada sucesso não era nada depois de alcançado. Nunca era realmente saboreado ou honrado. Porque havia mais e melhor para continuar a buscar. Sempre outro lugar para onde ir.
De alguma forma, tudo lhe parecia sem sentido neste momento. Sem sentido e vazio.
A felicidade não podia ser assim.
Este ponto de viragem submergiu Artemísia num profundo mergulho interior de auto-descoberta que, no início, foi abençoadamente brilhante. Uau!
De repente, conseguia ver para além da pesada nuvem de auto-julgamento e sentir a liberdade que reside na doce inocência de uma criança, agora associada à experiência de vida que evolui para a idade adulta sem ressentimentos. Era isto que ela queria alcançar. Era isto! A felicidade que ela procurava!
Mal sabia ela que, para ter isto como um estado interior permanente refletido na sua realidade e nas suas experiências atuais, teria de recuperar as crianças feridas ao longo dos anos da sua vida... e também quaisquer outras expressões de si própria que surgissem ao longo desta expedição de escavação nos escombros. Não havia outra maneira de descobrir os diamantes e viver em regozijo.
Hmmm... Parecia assustador. Será que é possível?
Se não fosse possível, concluiu ela, não teria a noção disso e independentemente de conseguir reunir todas as suas partes perdidas ou não, não importava. O que importava era a viagem. Cada criança sua, reconhecida e amada, trazia-a um passo mais perto do seu objetivo de plenitude.
Não fazia ideia de como o fazer, mas como sempre ocorre quando realmente queremos, deparou-se com uma coisa chamada Respiração Consciente e Compassiva e começou a aperceber-se de que se tinha esquecido completamente de como respirar abertamente. A sua respiração era curta, apertada e receosa. Começou a prestar mais atenção aos bebés e à forma como eles respiram com todo o corpo. Ela também costumava fazer isso, há muito, muito tempo atrás.
Agora era fisicamente doloroso abrir o aperto do diafragma e deixar a barriga sair com a inspiração - absorver a respiração abertamente. Foi preciso tempo, paciência e também muita frustração. Inicialmente, quando se sentava para prestar atenção à sua respiração, era difícil ficar quieta durante mais do que alguns minutos.
O ruído dos seus pensamentos era constante e perturbador. O seu corpo sentia-se rígido.
No entanto, estava determinada e, para encurtar a história, após muitos meses de prática consistente, começou gradualmente a ser capaz de relaxar, de ficar quieta e de não permitir que os seus pensamentos ruidosos a distraíssem da sensação interior de quietude, igualmente presente.
Artemísia apercebeu-se de que o seu corpo doía em sítios de que nem sequer tinha noção. E o seu coração. Ufa! Não estava feliz. Havia fechaduras e portões e muros e armaduras e todo o tipo de camadas pesadas de cicatrizes protetoras, para o manter fechado e "a salvo" da dor. No entanto, todos estes apetrechos pesavam-lhe como uma pedra tumular e, lenta mas seguramente, estavam a matar-lhe o coração - a matá-la a ela.
Enquanto examinava as camadas de vergonha, culpa, mágoa, ciúme, medo, arrependimento, frustração, dúvida, tristeza, angústia, desamparo, desespero... tanta dor, a zanga sobressaía e, surpreendentemente, produzia uma raiva e um ódio escondidos que Artemísia nunca ousara imaginar que também fizessem parte dela.
Invariavelmente, por detrás de todos os disfarces, cada monstro, cada gigante, cada guerreiro estava dorido, perdido, era apenas uma criança que precisava desesperadamente de ser vista, abraçada, cuidada e valorizada. E ela era a única que podia fazê-lo. Todas as outras tentativas ao longo da sua vida, apercebia-se agora, todas as tentativas de ser apreciada pelos outros não tinham feito nada por estas crianças. Apenas as tinham mantido escondidas, lutando pela sua sobrevivência, gerindo a sua vida e dando as ordens a partir de um cenário muito ruidoso de vitimização, querendo ser salva, precisando de salvar, sem saber que a única coisa que faltara, sempre, era ela própria. Artemísia. Simplesmente reconhecendo-se a si mesma.
Talvez porque ela nunca tivesse sentido a Presença do seu Eu mais grandioso, da sua consciência expandida. O Um que ela era para além da sua perceção humana de limitação. Conciliar este conhecimento com a sua sensação de ter sido abandonada para sofrer não foi fácil.
Se existia um Eu maior, uma Alma, que ela agora não podia negar, pois era mais real do que qualquer outra coisa dentro de si, porque é que esse Ser extraordinário que ela era, não tinha aparecido para a tirar da sua miséria interior? Porquê?
E, gradualmente, Artemísia apercebeu-se que só a expressão Humana dessa Alma que tomava consciência de si própria como sendo digna, suficiente e se via pronta para se sentir segura, escolhendo deixar de se esconder por detrás das paredes de betão da separação, só o Humano podia fazer essa escolha, podia dizer: Sim!
"Sim, estou pronta para acabar com a dor da escuridão. O esquecimento da totalidade de mim. Estou pronta para reconhecer que sou aquela que tenho estado a punir e que sou aquela por quem tenho estado à espera. Só eu posso acabar com o julgamento de mim mesma. De ficar presa no julgamento dos outros. Do mundo. Da forma como as coisas são. Só eu posso dizer SIM! Estou pronta para voltar para Casa, para este corpo, para esta expressão humana e para parar de imaginar que é melhor estar noutro lugar no Universo. Só eu posso colapsar na Compaixão da minha Alma e permitir que ela me mostre como curar toda a dor que experimentei e transformá-la em ouro. Só eu posso dizer "já chega". Só eu posso deixar de estar presa no medo. De ceder à raiva. De perder-me na batalha".
Artemísia ficou surpreendida ao perceber que, no momento em que cedeu ao ódio a si própria e aos outros, à vingança, à raiva, há muito tempo atrás, noutra vida, como outra pessoa, mergulhou numa série de experiências que a levaram repetidamente mais adiante na Escuridão. Escuridão essa que ela agora via significar apenas Ignorância - esquecimento da sua natureza como um Ser que experimenta a humanidade.
Todas estas experiências tinham, no entanto, alargado as suas capacidades como um todo e especialmente a capacidade da compaixão. Não enquanto estava imersa nas Trevas, mas como potencial, quando se lembrou que também era Luz. Não apenas Luz, mas também. E assim o potencial de fundir ambos Luz e Sombra num novo todo tinha crescido e crescido e expandido enormemente.
Isto dera origem a novas possibilidades de harmonia, cooperação e equilíbrio em toda a existência. Não importa onde.
A felicidade a sério, Artemisia penso, era, afinal, possível. Mas não era o que ela houvera procurado. Era esta paz de reconciliação consigo mesma e dentro de si própria. O silêncio expandido à medida que o ruído das partes dela começava a diminuir no seu regresso a casa. Era a quietude da compaixão. Sabendo que tudo está bem, no final. E que não há fim - nada é desperdiçado. Tudo se transforma e o tesouro de cada dor torna-se uma jóia de sabedoria. Acabar com as batalhas. Parar a busca. Confiar no seu coração. Escutar a sua Alma. Amar a sua humanidade. Não precisar de fingir de forma alguma. Ser transparente. Honesta consigo mesma e com os outros. Real.
Isto era a felicidade. E era uma descoberta constante.
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