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quarta-feira, 29 de março de 2023

Viver Sem Tetos

 Jasmim decidira oferecer-se uma tarde à beira mar naquele dia de primavera ventosa em que a ternura do sol aquecia o coração e apetecia ficar só assim, a receber o aconchego arejado e de vistas largas.

Ultimamente andava um pouco amedrontada com a irregularidade do seu rendimento e ainda que tivesse razões de sobra e provas constantes de que nunca lhe faltava nada, parecia uma espécie de névoa que aparecia do nada e de repente lhe enchia a cabeça de palavras sem sentido, apertando-lhe o peito.


Ficava perplexa e um pouco irritada consigo mesma. Se sabia que nada daquilo era verdade, porque é que ainda apreciam aqueles medos e mais importante ainda: porque é que lhes dava ouvidos?


Não conseguia explicar porquê. Nem encontrar a forma de desaparecer com tudo aquilo.


É que mesmo nos momentos mais difíceis e em que parecera não haver qualquer forma de poder pagar as contas, a solução acabara por aparecer. Mas é que aparecera mesmo! E até hoje nunca ficara em falta com ninguém.


Aliás, a vida que levava era abundante - “vida de rico”, poderia dizer-se. Tinha muitos dias livres em que podia fazer o que lhe apetecesse. Visitava lugares magníficos, frequentava restaurantes com iguarias deliciosas, assistia a espetáculos incríveis e participava de atividades gratificantes e produtivas, conseguia prover para os seus filhos sem nunca lhes faltar com nada e proporcionar-lhes experiências inolvidáveis… enfim, não lhe faltava mesmo nada.


Até mesmo quando tinha decidido que o divórcio era a melhor solução para a sua relação desgastada, saindo de casa com os seus três filhos nunca tivera dúvidas da sua decisão. E conseguira sempre, mesmo sem nunca ter recebido pensão de alimentos e ter escolhido não entrar em guerras vãs por causa disso. Preferira sempre o seu sossego interno, a sua paz de espírito, à preocupação e luta.

Mas, ainda assim, sempre que o rendimentos ficava mais irregular, lá vinham os disparates que estava habituada a criar na sua cabeça.


Trabalhar por conta própria era uma bênção e não equacionava ir à procura de um emprego com rendimento fixo. Há mais de duas décadas que fizera essa escolha e sempre conseguira navegar pelos mares de mudança, adaptando-se a cada nova fase com facilidade e abertura.


Olhando para trás, via que sempre fora líder, mesmo quando trabalhara por conta de outrem. E no entanto parece que se esquecera dessa sua natureza de líder. Exemplar, diga-se. Amorosa, compassiva, firme e segura, competente e confiável.


A falta de autoconfiança parecia um jogo que não se cansava de jogar, mas não passava de um jogo, pois nada tinha de real.


Jasmim sabia que não podia irritar-se consigo mesma. Esse caminho era conflito interno na certa. Sabia que não podia entrar em julgamento para consigo mesma. Sabia que não queria nada daquilo que imaginava mas que nunca chegava a ocorrer. Sabia que era exímia no seu trabalho que exercia de forma única e irreplicável. Sabia a vida que tinha e que queria continuar a criar.


E então porquê aqueles sufocos mentais?


Deitada na areia, recostada numa rocha confortável, respirando de olhos fechados, deleitando-se na cálida luz daquela tarde serena, eis que a sua Essência lhe lançou uma pergunta lá do fundo de si mesma:


“Estás pronta para viver sem teto?”


Olhou para aquilo e sentiu o que significava. Viver sem teto. 


E a sua Essência continuou:


“Agora que tens chão firme em ti, que Eu Divino e Tu Humano somos de facto um só todo, neste corpo que nos permite vivenciar esta dimensão, a única coisa que falta é permitires que o teto dos teus medos possa dissipar-se.” Pausou.


E depois continuou: “abre os teus olhos e olha lá para o fundo - vês aquelas nuvens leves e transparentes no horizonte? Assim é o teu teto. Acabará por diluir-se com o vento da consciência. Mas se estiveres preparada para escolher viver sem teto agora mesmo, podes tornar essa diluição mais simples.” Deu-lhe tempo para assimilar.


“Sabes, a verdade é que isso vai ocorrer de uma maneira ou de outra, pois neste ponto em que estás não há outro caminho. Mas pode ser fluido e amplamente tranquilo… ou desconfortável. Neste ponto de consciência em que estás já nem se trata de teres Livre Arbítrio pois já escolheste há muito que o que querias era mesmo Ser. Ser Um em ti. Ser Um comigo. Entrega total. E ao fazeres essa escolha, escolheste o teu caminho.” Silêncio.


“Vou fazer-te mais uma pergunta.

Estás pronta para assumir a dianteira na tua vida, neste caminho que é único e que ninguém pode trilhar como tu nem por ti? Estás pronta para seres o exemplo vivo disto mesmo? Para deixares de ser uma seguidora e passares a assumir-te pioneira?”


Jasmim estremeceu com aquilo. Sabia que sim. Que estava pronta. Que o que tinha para oferecer ao mundo e a si mesma era único, tal como o era o que cada um tinha para ser e partilhar pois não há dois caminhos iguais, dois exemplos idênticos, duas sendas que se comparem. Tentamos compará-las, é certo. Mas elas são incomparáveis.


Ser o exemplo. Refletiu. Então ser o exemplo não é sequer algo que seja para outro alguém seguir porque esse outro alguém terá que descobrir-se no seu próprio exemplo que é único. O exemplo serve apenas para refletir autenticidade. Coerência. Equilíbrio. Harmonia. Não é relativo ao que se pensa, diz ou faz. É relativo ao que se É. Ser-se inteiro é o exemplo. Estável no seu próprio chão e sem teto que nos limite a expansão.


“Somos todos Um. Somos todos uma coisa só expressando-se através de uma vastidão de experiências.”


E ela compreendeu. Jasmim compreendeu enfim esta afirmação “Somos todos Um”. Cada um é Um em si mesmo e na sua Divina Essência é uno com tudo. Apenas uma Natureza. Não existe separação. Múltiplas expressões através de múltiplas experiências. A expressão de cada experiência parece ser separada mas o oceano é o mesmo, tal como aquele que via à sua frente neste preciso momento, onda a onda desfazendo-se na areia e voltando depois a ser mar. 


É em ser-se o exemplo da sua senda única, ser-se o pioneiro, o líder da sua aventura de descoberta de tudo o que se pode Ser, que reside simultaneamente o que nos distingue e o que nos une. E cada um é uma combinação de experiências diferentes não só cada uma em si mesma mas no seu conjunto, o que faz com que não haja duas expressões iguais de ser-se algo e de rever-se no que se É. 


“Sim, estou pronta. Não quero mais acreditar que não sou o suficiente. Que sou incapaz. Que sou limitada. Que me vai faltar alguma coisa. Que ainda não sei o que realmente sei. Já chega!”


E a Essência de Jasmim irradiou um amoroso abraço interno, recordado-a:


“Não vale a pena zangares-te contigo mesma. Em cada momento que um desses pensamentos que dizes não saber de onde vêm, te vier visitar, sorri. Aceita-o sem medo desse medo que te quer convencer de si mesmo. E sem mais delongas, desapega-te de o julgar, até mesmo de estares farta dele. Entretém-te a amar. A amar-te. A amar-me. A amar-nos. A viver este amor de todas as formas. Mesmo na aceitação de todos estes pensamentos. Isso é amor. E eles vão perder a força. Vão dissipar-se como aquelas nuvens suaves lá ao fundo. Até que um dia destes, sem saberes como, já não aparecem mais. Achas que vais ter saudades?”


A Essência de Jasmim tinha sentido de humor. E Jasmim riu-se com uma gargalhada sonora. E riu-se depois ainda mais. De tudo aquilo que temia e sabia não ser verdade. Da sua irritação. Das suas brincadeiras de pequenez e insegurança. Riu-se com vontade e abandono. Leve e solta. Sem teto. 


Hmmmm sabia bem sentir a sua Essência. Estável. Segura. Amorosa. Suave. Firme. Compassiva. Pacífica. E hilariante. 


“Somos sensações.”


Sussurrou-lhe por entre o riso. E Jasmim sentiu um arrepio por todo o corpo. Grata por tê-lo, este corpo onde tudo podia ser sentido.


Claro que estava pronta! Pronta para realmente confiar total e absolutamente. Incondicionalmente. 


Não se pode senão estar pronto quando se aterrou completamente no corpo que alberga o Espírito de todas as coisas. Este corpo aqui na Terra que tem o propósito de providenciar esta experiência de reunião para lá da dualidade no contexto da polaridade.


Os tetos foram necessários apenas enquanto ela havia sido como que um balão sem chão, flutuando para dentro e para fora desta realidade, sempre com medo de perder o pé de todas as vezes que a sua Essência se aproximava e sempre com medo de ficar para evitar sentir-se presa, perdida de si mesma, pensava ela. 


Agora sabia que esse medo de perder o chão através da intensidade da aceitação da sua Alma na sua Humanidade, residia precisamente na sua ausência daqui, residia em não permitir-se fundir - ser um Humano Divino fundido na fiscalidade, a experienciar todas as dimensões através da expressão, da criação e da expansão. A integrar tudo aqui e agora. A ser tudo rumo à eternidade. A viver dentro do Tempo e do Espaço apenas para realizar-se intemporal. A ser forma apenas para realizar-se sem forma. A permitir a limitação aparente de um corpo para depois realizar a sua natureza ilimitada. 


Perfeito. Fora tudo perfeito. Era perfeito e não podia deixar de o ser. 


E ela estava pronta. Ela está. Ela É. 



Foto: Pexels - Bella White


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