É o que tu escolhes…
Acordou em sobressalto. O seu coração galopava ao ritmo da respiração sôfrega e uma cortina de medo cobria-lhe o discernimento. Marcos acabara de ter um pesadelo estranho… como se não fossem todos.
No seu mundo onírico vira-se num descampado imenso onde o chão nem existia nem deixava de existir. Um nada sem fim do qual nasciam terramotos, vulcões, mundos que se erguiam e desmoronavam, gritos e aflições, nenhum lugar onde se pudesse refugiar daquele descalabro que apesar de tudo não o afetava. Apenas assistia sem poder fazer nada que alterasse os acontecimentos.
Ao mesmo tempo, nas suas costas aconteciam brisas suaves e sons tranquilos mas não conseguia voltar-se para ver esse cenário, por mais que tentasse. Aquele panorama destrutivo era tão intenso e cativante que nada mais lhe prendia o olhar, ainda que sentisse dentro de si uma vontade imensa de poder virar-se para o outro lado e ver algo bem diferente.
E foi nesta aflição que em crescendo acabou por acordar em pânico, com imagens vívidas dos cenários a que acabara de assistir.
Virou-se de barriga para cima e ficou por largo tempo a respirar fundo para se acalmar e ganhar discernimento sobre tudo aquilo que acabara de vivenciar.
Marcos andava há tempos a querer mudar de vida. O esforço, o sofrimento, a luta já não lhe faziam sentido, mas mal se sentia a ganhar força e vigor rumo a algo mais aprazível vinha mais uma avalanche de coisas menos agradáveis. Havia no entanto dentro de si algo que lhe dizia que fazia parte - tudo isto fazia parte da mudança e que tinha que perseverar e ter paciência.
Neste momento, no desaguar do seu pesadelo e enquanto respirava, começou a tornar-se claro que era ele mesmo que tinha que escolher. Escolher desapegar-se de vez de toda aquela adrenalina do mundo dramático e entrar com os dois pés numa outra forma de vida.
Já a vira. Já a conhecia. Tinha a sorte de ter duas amigas chegadas que viviam precisamente essa realidade tranquila, generosa e amorosa por que ele ansiava.
A questão é que quando estava com elas e olhava para esse mundo que elas tinham sido capazes de criar, parecia bom demais para ser verdade. Era como se não pudesse merecer tudo aquilo, como se fosse avassalador e intenso demais - mais do que ele conseguiria abarcar no seu largo coração que ainda assim teria que alargar muito para além do que ele era capaz de conceber logicamente para poder viver toda aquela plenitude de que elas eram o exemplo vivo.
Era literalmente como se elas vivessem numa realidade paralela, de tão diferente que era daquilo que ele via ao seu redor e conhecera até então. Hmmmm mas como sabia bem estar com elas. Era uma amor caloroso que afagava, doce e aconchegado, brilhante. Era isso que elas emanavam para quem quer que se permitisse recebe-lo. E não conseguiam evitar, pois era simplesmente o reflexo de si mesmas. Diferentes e únicas, cada uma delas e quando juntas também um todo maior que a soma das duas.
Por isso tinha que decidir. Tinha que escolher. Ás vezes sentia-se mal por virar as costas ao sofrimento e deixar todos os outros nessa condição. Mas depois lembrava-se que ao tornar-se inteiro e livre dos dramas da dualidade, seria um contributo constante para um mundo mais harmonioso e amoroso, espalhando sem esforço a alegria grata de estar vivo.
Ouviu a voz da sua consciência, cálida e compassiva… “Confia. É o que tu escolhes. É isso que importa. Existem tantas realidades quantas escolhas permitir tornar possíveis e ao permitir que se manifestem também as proporcionas como possibilidades para quem mais queira assim escolher. Escolhe. Confia. Permite. Cria e age. Move a energia da tua consciência.”
Tinha definitivamente que respeitar-se e cuidar-se muito mais e ser coerente com a sua escolha já feita. Não podia haver meio termo.
Sabia, porque já tinha visto isso acontecer inúmeras vezes, que sempre que reafirmava o permitir-se ficar mais cuidadoso consigo mesmo, vivia uns dias bem bonitos logo seguidos de uns bem difíceis.
Não eram os dias em si que eram difíceis, mas mais a forma como se sentia em relação a si mesmo. Vinha tudo o que ele não gostava em si de avalanche e tinha dificuldade em abarcar tudo. Mas não podia mais negar-se a aceitação de absolutamente tudo o que fazia parte de si. Sem julgamento. Já chegava de brincar ás escondidas e fingir que essas partes menos aceitáveis podiam ser eliminadas ou enviadas para os éteres e destruídas. Não podiam mesmo. Era literalmente impossível. Seria como cortar os braços e as pernas e todos os órgãos essenciais do seu corpo e esperar sobreviver. Essas partes que até agora vira como inaceitáveis continham uma boa dose de sabedoria e tinham sido essenciais no seu caminho. Afinal de contas era ele o seu criador. O criador das partes de si. E por isso mais ninguém o poderia “consertar” ou “curar” de si mesmo.
Respirou fundo e largou aquela bola de medo que se instalara no seu peito, deixando-se cair no pacífico amar no seu centro. Nada mais. Estava disponível. Recetivo. Pronto para abraçar-se inteiramente.
E a alquimia compassiva da aceitação plena foi abrindo brechas nas suas paredes e fendas nas suas portas e janelas. Abrindo. Abrindo. Estava na hora de se inteirar em si mesmo.
Tanto para receber. Tanta riqueza em cada experiência vivida. Era ele que escolhia abrir ou fechar, ficar ou sair, amar ou temer, integrar ou separar… Era ele que escolhia a Terra que queria criar.
Tudo nele tinha valor e nada era bom demais para ser verdade. Não havia, aliás, outra verdade que não a que ele próprio permitia.
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