Vem na tua direção como uma onda do oceano em que flutuas, enquanto te apoias no destroço do navio em que navegavas e parece que te vai engolir.
Por um momento sentes alívio por saberes que não vais continuar a existir. E no instante seguinte decides segurar-te. Sem uma razão em particular. Ocorre-te simplesmente que não sabes o que há do outro lado do aqui, da mesma forma que não fazes ideia de como vai ser estar aqui depois do passar da onda, por isso escolhes intuitivamente descobrir o aqui após o agora, ao invés do ali.
A onda vem e não consegues respirar por uns instantes. É demasiado grande. Demasiado intensa. Perdes temporariamente o senso de quem és e de onde estás. Há muitos tombos, alguns momento para tomar ar aqui e ali, mais um pouco de luta para ficar à tona e depois, após o tumulto, o mar fica de novo calmo e sereno, segurando-te, apenas.
Claro que agora estás cansado. Não tens ideia de como irás ter forças para manter o teu peso sobre o pedaço de madeira mas assim que o cansaço te sequestra não há nada mais a fazer senão confiar que o que quer que venha a passar-se é o melhor para ti e sucumbes ao escuro reconfortante do sono.
Muitos sonhos vêm visitar a tua mente exausta. Alguns mais apelativos do que outros. Acordas algumas vezes num torpor, sem saber como ainda estás vivo ou se estás realmente vivo, sequer.
A tua carne parece sólida e as dores no teu corpo são demasiado reais para negar que estejas fisicamente aqui.
Passam-se com certeza muitas horas nesta sonolência, meio acordado, meio a dormir, por vezes completamente embrenhado na dormência do mundo dos sonhos.
O sol vem e vai e vem e vai de novo… e tu continuas a flutuar.
Sede, fome… De alguma forma deixaram de ser as tuas principais necessidades. Começas a desejar com todo o teu coração que alguma espécie de veículo flutuante possa aparecer no horizonte, ver-te e salvar-te.
Aí recordas-te de como era estares no navio em vez de estares aqui a flutuar neste pedaço de madeira. De certa forma, parecia ser mais seguro, mas não completamente. Nunca completamente. Havia sempre esta possibilidade iminente de afundar. Na verdade, agora que és só tu e este pedaço de madeira no qual estás apoiado, parece ser menos assustador que quando estavas dentro do próprio navio! Estranho, não é?
Bem, não se te deres conta de quanta manutenção requeria o navio para que pudesse continuar a navegar.
Ao menos agora és só tu, o oceano e o pedaço de madeira. Nenhuma manutenção. Nenhuma forma de o fazer. É absolutamente simples.
Apercebes-te que a tua vida era demasiado complexa antes desta ocorrência e a gratidão começa a preencher-te. Sim! Gratidão! Nas circunstâncias mais inesperadas. Ao menos agora não tens nada a perder e tudo a ganhar.
Por isso quando uma pequena embarcação aparece, um ponto de luz no horizonte distante, sentes-te em paz com o que possa vir ao teu encontro.
Aproxima-se devagar. Parece estar a eternidades de distância. Seja como for, não tens mais nada para fazer a não ser esperar. Não há por que ansiar. Desesperar.
Surpreendentemente, vem na tua direção, como se tu fosses um íman a atraí-la. Agora faz sentido acenar e gritar. Não porque te consigam ouvir mas apenas para criar alguma agitação.
Não fazes ideia de como te viram. Mas de alguma forma os que estão no barco vêem-te e em menos de nada o barco está mesmo aqui.
Mas está vazio. Por isso tens que subir sozinho.
Afinal nunca houvera lá ninguém dentro. O barco veio ao teu encontro para que o pudesses velejar. E tem tudo de que poderias necessitar agora! Tudo!
Criaste algo completo e perfeito em si mesmo, para ti, aqui neste momento, e recebeste-o…
O júbilo que sentes é incomparável. Algo jamais sentido até agora. Não é eufórico e no entanto é extremamente alegre. É gratificante, pacífico e docemente amável. E é tão inacreditável também! Ainda que estejas dentro dele, a navegá-lo! A verdade que “tu és isto", levará o seu tempo a integrar. Que tu és tudo isto. Tudo o que vês e percebes. Tudo.
Um destino. Possivelmente deverias estar a navegar em direção a algum lugar. Mas com o vasto oceano 360º à tua volta, há tantas possibilidades que é difícil escolher. Até te esqueceste da direção que tinhas tomado quando estavas no navio que depois se afundou. E de facto já não tem importância porque o que te esperava não está mais à espera. Eliminaste a espera. Morreste para ela. És um novo eu numa nova embarcação, numa nova viagem. A navegar as ondas da mudança com satisfação e simplicidade, um coração sorridente e olhos vivazes, vislumbrando o novo desconhecido como sendo o teu glorioso porto seguro.
Abençoados são aqueles que salpicam a sua vontade de viver de novo através de cada respiração que oferecem ao rio da existência.
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