Um dia ela recordou-se. Por entre os pântanos enevoados das suas viagens incríveis, ela viu uma esplêndida nova flor a assomar à superfície do paul lamacento e aproximou-se, intenta de descobrir o que ali brotava. Como era concebível que algo tão delicadamente belo pudesse erguer-se de águas tão obscuras?
E eis que viu. E parou. Perplexa com este encontro inesperado, sentou-se na margem verdejante do que antes parecera uma amálgama sombria de natureza insondável e apercebeu-se que na verdade existia ali uma harmonia indefinível, aqui mesmo neste pântano aparentemente caótico.
Havia Vida! Quando parou para contemplar, pôde finalmente ver que um ecossistema de morte e nascimento houvera tocado a sua própria sinfonia durante todo aquele tempo, por si só, sem necessidade de ser conduzido.
Tudo o que aqui existia sabia a sua função e lugar em cada momento. Parecia não haver qualquer espécie de plano. Apenas a vida a desenrolar-se em perfeita sincronicidade.
E eis que decidiu olhar para dentro, tenaz descobridora do que poderia estar a motivar a sua sensação de aprisionamento em alguns lugares escondidos, ainda que noutros cenários mais visíveis se sentisse livre.
Aha! Deu-se então conta das crianças! Tantas crianças presas em gaiolas que pareciam seguras mas que eram no entanto terrivelmente confinadas. Encarceradas num estagnado círculo contínuo, suspenso no Espaço e no Tempo, cada criança vivia a sua própria história e nada mais sabia sobre o resto. Entretidos com a sua própria sobrevivência, sem terem a noção da existência de algo chamado Amor. O Medo era a única faceta da existência que conseguiam alcançar.
“Oh não!” Disse ela para si mesma. Agora que houvera visto não podia fingir que não sabia… Porém, silenciosamente o Medo do Medo avançou pé ante pé, saindo do seu habitual refúgio nos corredores da Mente para espalhar o seu veneno no seu coração, criando alguns instantes de pânico, conforme ela se deu conta que não fazia ideia nenhuma de como libertar estas crianças que agora sabia existirem presas em si.
Respirou fundo e focou-se de novo no rebento de flor à superfície do lago. Lago? Agora era um lago? Algo estranha estava a ocorrer diante dos seus olhos e a sua Mente lutava por conseguir alcançar a enormidade do que não conseguia compreender.
Suspirou. Largou o enigma e escolheu ficar quieta, sentada no seu jardim interior, o lugar mais seguro que houvera alcançado em todo o seu intrépido viajar.
E sentiu. Era cálido e gentil. Um abraço oferecido pela sua própria respiração, uma avenida de clareza onde o que ela sabia ser a sua inteireza pudera finalmente ser permitida, onde ela se permitira enfim ser amparada nos doces braços da Compaixão.
Hummmmmm sabia tão bem! A sua Mente sossegou, Não havia nada a dizer. Apenas ficar, Aqui. Agora. Na ausência de ruído, onde o julgamento não conseguia encontrar poiso. Onde uma nova fragrância emergia. E o rebento começou a desenrolar as suas pétalas e a revelar mais do seu esplendor interior.
Ela sorriu. Sabia que podia confiar. Agora sabia. Estava a presenciar a Verdade a brotar do seu âmago e nada poderia fazer com que lhe voltasse a virar as costas.
Um novo sentir preenchia o sangue que lhe corria nas veias, um novo relaxar no fluxo da Confiança. Chamava-se Amor aquilo que estava a sentir, mas o que era realmente aquilo?
E intuíu. Era mais. Mais do que em qualquer outro agora. Mais de Si mesma, da sua Verdadeira Essência. Irrestrita. Sem limites de vida, morte, espaço ou tempo… Era o Saber Eterno de Ser a precipitar-se para dentro de cada célula da sua forma Humana e ela recordava mais. Ainda mais e mais e mais. O vazio do retorno a Casa.
De súbito todas as limitações que pudessem ter justificado os cárceres destas crianças desapareceram e ela cantou a mais bela melodia de perdão, pois a culpa não podia perdurar mais no seu coração e a vergonha desvanecia-se a par e passo com a sua amiga culpa, deixando para sempre o lugar onde haviam habitado em si. As crianças podiam agora retornar a Casa, sem que importasse o que elas acreditavam ser o motivo da sua culpa, nem mesmo a raiva que as mantinha reféns as podia reter, os próprios monstros que haviam fingido ser desvaneciam-se perante tamanho perdão. Podiam vir. E os braços dela eram infinitos e o amor era insondável na sua graciosa grandeza…
Ela chorava… Tantas lágrimas de alívio vertia, à medida que tinha enfim a coragem de sentir a dor destas crianças, de ouvir as suas angústias, de apaziguar os seus pânicos, de aliviar os seus fardos obsoletos e de lhes fazer saber que agora, finalmente, estava tudo bem.
Tornara-se o Um que é o Lar para as multidões de si e não havia uma única parte menos digna desta Unidade de Ser.
Não podia persistir qualquer divisão em si. A intemporalidade urgia pela sua reunião. Convidando-a a Ser tudo o que ela sentira mas que nunca se reconhecera merecedora de Ser.
Houvera sido apenas um jogo. Um jogo que trouxera ao tecido do Universo mudanças extraordinárias e nada poderia voltar ao que fora nem se sabia o que viria a ser, pois não havia um plano, afinal! Apenas havia esta gravidade inevitável da transcendência onde o Negro e o Branco são a soma de todas as cores e nada pode ser perdido.
“Para sempre” era agora diferente e “nunca” tornou-se um conceito estranho de manter.
Entretanto a flor no charco… agora era um charco… Multiplicara-se em muitas mais, mais do que ela conseguia contar e todas elas estavam completamente abertas, a irradiar a sua glória interior para o céu, conforme a Terra lhes segurava e alimentava as raízes com cuidado e amor.
Aha! A Terra era então feita da mesma infusão de amor infinito que os seus braços interiores haviam espalhado pela imensidão das suas experiências, trazendo-as de volta para uma raiz coesa, para que todos os seus botões de flor pudessem abrir-se e entrelaçar a sua beleza em tudo o que ela conseguia agora ver. A Mãe cuidadora do Espírito encarnado. A Terra. E tal como dentro de si, assim era ao seu redor. Assim no Céu, como na Terra.
O Céu! O Paraíso! Era isto! E ela não precisava de ir para nenhum outro lugar para recebê-lo. Para vivê-lo. Tudo o que havia a fazer era simplesmente ficar. Sossegar. Permitir que o Amor espalhasse… espalhe a sua magia e aceitar que sim, podia ser assim tão simples.
Tendo-se permitido abraçar todas as experiência que tivera até então, distilando-as no abraço compassivo da eternidade, podia por fim largar tudo o que houvera sido ou sabido, para ser apenas a inteireza de si agora, descobrindo a liberdade plena em cada nova respiração.
A gratidão tornou-se um estado permanente e o lago metamorfoseou-se em oceano, um oceano tão vasto que não tinha margens.
Mas as flores, hummmm as flores. Essas ainda lá estavam a colorir a superfície com a sua inegável fragrante beleza. Aceitar. Aceitar que assim É. E desfrutar em agradecimento pelo magnífico caminho que indicam, as flores.
Chamam-nas flores de lótus, as que emergem da lama para brilhar em glória. Porém agora não havia lama e ainda assim elas continuavam a nascer e a desabrochar. Florescendo no oceano, ilimitadas pelas crenças que ela tivera sobre os possíveis e os impossíveis da existência.
E assim foi que os seus passos se tronaram leves como a briza que a sustenta.
Deslizava sobre a superfície da sua chegada. Alegre contentamento.
Plena ao ponto do êxtase, nada mais poderia querer, pois tudo está definitiva e irrefutavelmente aqui, agora.
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