De joelhos, imersa no colorido magnífico das belas flores que a abraçavam naquele momento, Sequoia pegou num pouco de terra para sentir-lhe a humidade e verificar a sua consistência. Deveria estar de luvas mas nunca conseguira habituar-se a usá-las. Afinal de contas, de que servia sentir a terra se isso requeria cobrir o nosso principal órgão sensorial?
Ah sabia tão bem! Era maravilhoso estar embrenhada no seio de tão honrosa companhia! As flores eram excelentes estimulantes de criatividade e a sua linguagem era absolutamente simples, ainda que complexa em simultâneo.
Sequoia sempre fora fascinada pelo mundo vegetal - especialmente as plantas que produziam floração. Tratava-se de um mistério da criação que nunca cessava de maravilhá-la e por mais que estudasse estas criaturas primorosas, nunca se cansava de descobrir novos detalhes que acabavam por ir revelando o quão sábia é a Natureza.
Desde muito cedo que decidira tornar-se Botânica, especializando-se no desenvolvimento minucioso das espécies produtoras de floração. Talvez por isso, passar pela necessária educação tenha sido um processo vivido sem esforço e com um propósito determinado. Não obstante, Sequoia encontrara sempre as melhores salas de aulas nos jardins e parques que visitava diariamente, impelida pela sua curiosidade aventureira infinda, abrindo incessantemente novas avenidas de exploração. Acabou por gerar tamanha proximidade com as suas amadas plantas que se tornaram mesmo as suas melhores e talvez únicas amigas de verdade.
Muitas eram as conversas que mantinham e nunca as benditas flores lhe negavam o seu apoio e cuidado - da mesma forma que ela lhes oferecia o seu.
Tal era a profundidade desta comunicação que por vezes compreender e ser compreendida pelos outros seres humanos tornava-se difícil para Sequoia. Todavia, era humana. Sim. Claro. Mas menos do que muitos ao seu redor. Sentia.
Por outro lado, Sequoia questionava-se se toda a gente se sentiria exatamente como ela. É que cada indivíduo era único e tinha capacidades específicas que não podiam ser reproduzidas com exatidão. E se todos sentissem a mesma estranheza perante os outros seres humanos que ela sentia mas estavam simplesmente a mantê-la (à estranheza) secreta - a fingir que tudo era e estava normal e que não se sentiam realmente estranhos?
O que se passava na realidade com eles todos - todos os humanos? Esta coisa de nunca se sentirem compreendidos, de terem problemas de integração mas viverem apegados à necessidade de serem aceites como se fosse água ou alimento? Este permanente questionar sobre ser-se adequado, ser-se “o suficiente”, saber…?
Havia qualquer coisa que não fazia sentido. Se ela própria e todos os outros eram de facto humanos, então para quê estar em conflito com esta sua condição? Qual era o propósito?
Talvez seja no questionamento, no sentimento de inadequação que nos encontramos a nós mesmos do outro lado da separação. Ponderou.
E a insatisfação. Parecia ser transversal a todos, não importa onde vivessem ou qual fosse a sua condição social. Uma espécie de insatisfação inquebrável. Mas Sequoia tinha a certeza de existir a possibilidade da completude.
Era disto que os Mestres de todos os tempos falavam. Um estado de beatitude. Unidade permanente. Aceitação compassiva. O Observador de todas as marés. Inabalado por quaisquer tempestades. Plácido como a manhã seguinte à tempestade.
Se alguns podiam alcançar este estado, então ele era alcançável. E se era alcançável e havia tão poucos nessa condição, então era definitivamente o que todos procuravam mas aquilo de que fugiam ao mesmo tempo.
Era como se estivessem todos - e ela mesma se incluía neste “todos” - a caminhar à beira da realização plena mas sem nunca se permitirem a queda completa nesse lago sereno… para poderem continuar a fingir a necessidade de buscar algo. Seja o que for. Apenas a busca pela busca. Sentirem-se incompletos para poderem continuar a esconder a verdade evidente que ninguém era, em última instância, menos do que a inteireza do seu Ser completo.
Muitas montanhas escalara em busca da Glória da Manhã - a planta bem como o senso interior de si mesma. Nas alturas, Sequoia sentia-se mais confiante, mais senhora das coisas, por assim dizer. A sua visão ampliava-se e a perceção que lá de cima todos os obstáculos se revelavam, trazia-lhe algum conforto e controlo. Era como se lá em cima ela se sentisse mais segura - longe das inseguranças confusas dos outros e mais perto da leveza intangível que ela sabia ser mas que não sentia tão fortemente quando andava lá por baixo, imersa nas massas.
O esforço físico trazia-lhe uma sensação de conexão. Fazia-a sentir-se viva. Mais humana e mais grata por sê-lo. A delicadeza das flores, por seu turno, faziam-na sentir-se divina. Um ser etéreo que via para lá da matéria sólida e que discernia multidimensionalmente.
As flores que adorava, contradiziam a crença comum que toda a inteligência reside no cérebro. Embora não tivessem nenhum, eram suas professoras. E ainda que o cérebro tivesse sido o sujeito de extensos estudos, ela sabia que a inteligência se encontrava no cerne de cada célula e era tão multifacetada quanto a multiplicidade de climas, regiões, raças e credos. Não havia uma medida que servisse a todos. Em parte nenhuma. Nem por entre os humanos. Nem por entre a Natureza - quer fosse mineral, flora ou fauna.
Nenhuma flor desejava ser algo diferente daquilo que era. Então porque é que os humanos tinham esse desejo? Eram mais inteligentes por isso? Ou apenas eternamente insatisfeitos?
Era esta insatisfação que promovia a evolução? Ou tratava-se meramente de uma distração que desviava a atenção da realização essencial que mostrava não ser necessário buscarmo-nos, pois nada havia para encontrar?
As constantes explorações científicas de Sequoia em torno das plantas eram uma busca. Mas não se tratava de buscar algo que não estivesse lá. Estava tudo ali. A busca era apenas de entendimento. De perceber o que lá estava. Permitir-se saber o que a natureza já sabia.
Tal era a natureza da busca humana também. Não se tratava de procurar algo que precisasse de ser encontrado. Mas de descobrir o que já lá estava. Ou melhor, remover a cobertura. Remover o véu de ilusões distorcidas que temos acerca de nós mesmos - acerca da condição humana. Parar. Respirar fundo. Largar o uso de crenças comuns como bitola para a nossa verdade genérica e irmos para além do que todos desconheciam mas fingiam saber, para podermos descobrir o que já lá estava.
Sequoia sorriu. Gostava muito que lhe tivessem dado este seu nome. Dava-lhe uma franca vantagem quando se tratava de encontrar o seu espaço interior de pacífica reflexão. Tal como a seiva que corre no tronco, assim lhe corria o silêncio interior onde nenhum julgamento a podia remover de si, estável e serena, resiliente e anciã… como uma árvore. Majestosa. As suas veias humanas estavam plenas disto mesmo. Ela sentia-se honrada por ter sido nomeada como uma árvore de tal majestade monumental e era-lhe fácil encontrar-se num estado de nada. De vazio. Por vezes. Outras nem tanto. Ás vezes era difícil encontrar a conexão.
Tratava-se de um mistério que Sequoia não conseguia entender, esta propensão humana de se ficar perdido na dúvida e na confusão - ela própria incluída neste círculo vicioso. Vinha como uma torrente de destroços e apoderava-se de tudo. E então parecia haver nada mais do que o turbilhão. Até que a matéria estática produzida pela desconexão se depositava no solo da eternidade e eis que a clareza se tornava inevitável. Perfurava a cortina do descontentamento tão familiar à condição humana e espalhava a luz sobre o que parecia estar desconcertado, ainda que depois se pudesse ver que esse desconcerto era apenas uma fração ínfima do todo. Nesse momento tornava-se evidente que de facto não havia problema algum. Apenas havia distrações da Verdade essencial que é esta: os humanos já são completos, nunca lhes falta nenhuma parte de si mesmos, apenas gostam de brincar às escondidas com o estado de permanente presença e sabedoria que reside antes e após o apocalipse.
Fazia toda a diferença. Isso fazia. O desconcerto. As revoluções internas. Os problemas aparentes e as suas resoluções. O estado fictício de estar atolado apenas para nos descobrimos livres do outro lado destas ilusões. Cada ilusão desembrulhada, adicionava mais ao bouquet da existência e não podia nunca ser menos do que aquilo que renascia em cada metamorfose. A escassez era então de facto abundância, por ser impossível que o infinito seja menos do que tudo. Era esta a descoberta permanente que se tornava cada vez mais criativa com cada obstáculo ultrapassado.
Era isto que fazia cada subida ao cume de cada montanha tão empolgante. A experiência da vitória lá no alto, como se fosse a primeira vez, sempre. Independentemente do número de vezes que já ocorrera. Porque era, era mesmo, a primeira vez, pois nenhum outro momento é igual a cada novo agora.
As flores ensinavam-lhe isto diariamente. Nunca ficavam estáticas. Iguais. De cada vez que se aproximava de uma flor, encontrava-a diferente. Beleza dinâmica em constante mutação. E quando murchava e se deixava cair na terra de novo, o que permanecia era a doce memória da sua delicada presença. Algumas flores floresciam ao longo de muitos dias, outras eram efémeras, mas não obstante o tempo do seu desabrochar, a marca que deixavam era impactante da forma mais positiva, nutritiva e elevada. E era talvez isto que fazia com que Sequoia favorecesse a sua companhia sobre a de outros humanos.
Os humanos eram demasiado complexos para se poderem compreender. As plantas eram, por sua vez, tão mais simples. Por isso todos os dias Sequoia desejara ser uma flor… apenas até se aperceber que o que ela era não podia ser separado das flores que ela admirava com tanto carinho e também não podia ser comparada, julgada ou formatada.
O que ela era era um jardim ricamente tecido com infinitas possibilidades, descobertas e metamorfoses evolutivas que se tornava tão mais magnífico quanto as discrepâncias criadas deliberadamente neste mundo dual, em prole da evolução. Como se se tratasse de um oceano infinito a descobrir-se conforme brincava com as próprias ondas que produzia.
Sentir, ouvir, ver, saborear, cheirar… Hmmmm sabia tão bem ser humana! E saber-se divina. E encontrar-se sem ter que ser um ou o outro. Não ter que entender quem ou o que era mas apenas permitir-se desfrutar de ser o que quer que estivesse aqui, neste momento da sua respiração.
A doce fragrância que emanava do canteiro no qual estava agora a trabalhar recordou Sequoia da tarefa que a trouxera até ali, para sentir o solo e medir-lhe o grau de humidade. E assim prosseguiu, recolhendo os elementos para levar para o laboratório, sem pensamentos a ensombrarem-lhe a mente. Apenas uma sensação de completude. Competa satisfação. Não havia nada para buscar. Rejeitar. Adicionar. Era isto a perfeição. Este momento do agora.
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