O menino que sempre soubera
O sorriso exultante da sua abertura inocente enche a sala enquanto o Adão se entretém fingindo-se um explorador numa expedição pelo meio dos móveis, com os picos e os vales a sucederem-se às vastas planícies de “relva” atapetada onde toda a sorte de criaturas imaginárias se passeiam pelo brincar do petiz. A sua imaginação envolve-o de tal maneira que não se dá conta de poder ser demasiado barulhento ou arrojado no seu ajustar da sala que estaria de outro modo arrumada. Para ele não há nada para além da sua completa imersão nesta aventura. Nada mais há no seu mundo neste momento.
Ainda não foi informado das aparentes impossibilidades da vida ou do facto de não ser infinito, eterno e estar permanentemente seguro, por isso para ele não há motivo de preocupação, sofrimento, medo ou retração. A alegria que emana do seu coração é tão palpável que é quase visível a olho nu - um fluxo arco-íris de poder incontido que é a abundância em si mesma.
Quando olha à sua volta, vê novos potenciais, descobertas, celebração, beleza extraordinária e o amor que sente por si mesmo e por todos não conhece vergonha ou culpa, erro ou julgamento. Ele é puro. Cristalino. Disponível. Presente. Vivo. Amor.
A seu tempo, começa a captar as ondas preocupadas das pessoas à sua volta, a dar-se conta de potenciais ameaças e razões para permitir que o medo possa gerir as suas escolhas e ações. Começa a ser repreendido e abafado, sendo-lhe mostrado claramente que o seu brilho é demasiado intenso e provavelmente inapropriado. Começa a questionar-se: “se calhar não sou suficientemente bom, tenho que descobrir como tornar-me melhor” e começa a sentir-se triste com cada vez mais frequência. Alguns monstros começam a deambular pelo seu mundo interno, deixando-o assustado até de si mesmo. Começa a questionar o seu saber interno e a acreditar que afinal também ele é finito, despojado de poder, e possivelmente incapaz em muitas áreas que parecem ser essenciais à sobrevivência num mundo que ele agora se dá conta que pode ser perigoso.
Absorve o que lhe parece funcionar para os outros e agarra as crenças que lhe são ensinadas como sendo o que é válido na vida. Consegue enfiar-se numa realidade encaixotada que mantém trancada no seu coração e gradualmente o fluxo arco-íris de omnisciência transforma-se num mero piscar intermitente… um leve sussurro que às vezes consegue dizer-lhe que ele é Amor.
Fica confuso sobre o que é verdadeiro e falso e não consegue encontrar senso na amálgama de realidade que vem a conhecer como a forma coletiva de viver.
Torna-se difícil alcançar a doce inocência que ele conhecera tão bem e eventualmente acaba por esquecer-se de quem realmente é, para poder assumir as vestes de quem é suposto que ele seja.
O julgamento torna-se um guarda necessário à entrada de cada interação e ele transforma-se num lutador, esforçando-se por alcançar a normalidade, apesar de não fazer ideia sobre o que isso possa ser e não haver quem o possa esclarecer pois mais ninguém parece saber, tão pouco.
Às vezes, nos seus momentos de quietude, a sós consigo mesmo, as memórias da infância inundam o seu coração e ele sente uma ânsia por regressar àquela vida de alegria infinita, de confiança e de sentir o profundo carinho que emanava do seu interior - aquele amoroso e cálido abraço em que ele se encontrava permanentemente e que o tornava corajoso, inocente e livre.
Mas a seriedade da vida adulta conseguiu eventualmente derrubar a alegria e esta encontra-se agora pregada ao chão lá no fundo de si, por debaixo de camadas e camadas de programas aprendidos, crenças, hábitos e verdades coletivas que são os ingredientes necessários para conseguir sobreviver no vasto mundo lá fora.
Conforme ele se entretém com a experiência da vida da maneira que lhe foi ensinado que funciona, encontra uma e outra vez becos sem saída e círculos intermináveis de “mesmice” que não o levam a outro lugar senão à dúvida, falta de auto-estima e valor - exatamente o que o catapultou nesta busca de vir a ser melhor há tanto tempo atrás. Tudo isto não passa de uma montanha russa permanente entre vitórias fugazes e fossos de desespero até que ele proclama “Chega! Chega deste circo! Tem que haver outro caminho!”
Quem procura de facto acha e ao cabo de muitas lágrimas, experiências dolorosas e reviravoltas bem sucedidas ele acaba por aterrar exatamente onde tudo começara. O espaço amoroso, doce e seguro no centro da sua barriga onde ele sabe que não é todas as mentiras que veio a acreditar e a construir acerca de si mesmo… nem os outros o são.
Ficar. Ficar é o segredo, então! Presente em si mesmo. O observador pacífico. Consciente do que é e do que não é. Para ele próprio.
A inocência ainda lá está. Cristalina e incorrompida. Como um diamante. Mas agora, depois de ter experienciado todo o seu reverso, ele sente-se diferente. Pode abraçá-la e fundir-se nela com a sabedoria de tudo o que sabe e viver de ora em diante a partir deste novo espaço de maturidade serena, que está plena de inteireza e eternidade, é infinitamente abundante, o campo fértil para todas as possibilidades e a pira funerária para tudo o que está agora pronto a transformar-se em nova energia, livre dos constrangimentos da memória.
Compaixão. É compaixão isto que o preenche com um saber tranquilo de que nada está deslocado no caos aparente da existência. E eis que estende um manto pacífico de harmonia sobre toda a sua realidade. Tangível e intangível. Tudo se torna Um.
Encontra-se agora num espaço de tal aceitação que não poderia entrar em conflito com nada nem com ninguém, mesmo que quisesse. A gravidade desta aceitação é absoluta e nela reside um profundo silêncio que não consegue produzir o ruído da separação. Nunca.
Perdão? “Não há, na verdade, nada a perdoar”, dá-se conta, com um largo sorriso de alívio. Deixar ir. Abraçar. Deixar ir. Num contínuo abrir para a vastidão de tudo o que É.
Os que lhe mostraram o caminho que conheciam já não são alvo de culpa. Ele deixou de se encontrar emaranhado nas suas histórias. Um súbito inundar de amor emerge do fundo de si e como uma onda de tsunami deita abaixo instantaneamente todas as ilusões de falta ou separação. Nada. Não lhe resta nada. Finalmente livre para ter e ser tudo.
Ele sempre soubera. Afinal.
Texto por T. C. Aeelah
Foto por Jonas Mohamadi (Pexels)
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