Dia 20 – 1 de Setembro
de volta a Portugal, com o coração cheio
O harmonioso chilrear dos pássaros acorda-nos devagar,
conforme o parque de campismo começa a despertar para um novo fim de semana em
que os miúdos queimam os últimos cartuchos antes do início do ano escolar.
Este parque tem piscina, muitas árvores e muitas famílias,
pelo que haverá decerto muitas boas amizades travadas ao longo de intermináveis
verões saboreados debaixo deste pedaço de céu.
O nosso dia vai começar com a visita a Hervás – mais um
daqueles lugares inesperados que o próprio caminho nos indicou sem pré-aviso.
Sinto-me aconchegada, hoje, e escolho abraçar
confortavelmente a doce suavidade da minha Essência com cada respiração que
tomo. Hummm! É como estar mergulhada num lago sereno e morno, onde posso flutuar
sem medo de me perder, pois vá para onde for, estou sempre em Casa.
E agora Hervás. É um vilarejo judio situado na Estremadura
espanhola e tal como muitos outros lugares por onde passámos até agora, é
especial.
As construções são sui generis, principalmente porque nunca
tinha visto uma vila judia. Aqui em Tomar temos uma rua, mas uma vila inteira é
outra coisa.
O engraçado é que as casas não seguem nenhuma regra
arquitetónica, sendo algumas bem estreitas e com tijolo à vista, outras com
madeira, todas de tamanhos e alturas diferentes e até mesmo as portas e janelas
diferem.
Pelo meio da vila sobe-se até uma ermida de onde se avista
toda a paisagem envolvente e ficamos por ali a apreciar a natureza e os
telhados, como se fosse um bolo de diversas camadas, todas elas deliciosas.
Uma senhora passeia o seu gato. Sim, o seu gato, leste bem.
Imagina que ela está convencida que o gato lhe há-de obedecer, como se fosse um
cão, mas os planos do felino são outros. Ela vai-se arreliando, dizendo “Vien,
vien aqui…” e o gato faz ouvidos de mercador. Demora-se, cheira aqui e ali,
sobe o muro devagarinho, desce, ignora-a e depois lá vai indo, no seu próprio
passo descontraído, altivo e misterioso. Quase que se consegue ouvir o
gargalhar de gozo do bichano! Imagino o que será este filme todos os dias. A
senhora a “pastar” o gato e o gato nas tintas para ela. Fica-nos na memória
este momento de comédia ao vivo.
Há por aqui muitos gatos, aliás. Nos telhados, à janela, nas
soleiras das portas… a condizer com a calmaria do lugarejo.
Muitas das casas são residências de férias, como naquelas
aldeias transmontanas que já ninguém quer habitar mas que têm casas lindas
recuperadas por veraneantes que depois as alugam também durante o resto do ano
aos turistas.
Em tempos terá havido escola, o riso das crianças a brincar
na rua, o corrupio do dia-a-dia, mas agora são os restaurantes e cafés que se
abastecem para mais um fim de semana movimentado.
Passamos por um mini-mercado com uns tomates tão
vermelhinhos que nos fazem arregalar os olhos, mas não compramos… ainda.
Depois do nosso passeio ocioso ao redor de toda a vila,
decidimos voltar à procura dos tomates, mas já não encontro os mesmos. Ainda
assim é este que vai ser o nosso repasto, com azeite e um pão tradicional
fresco que compramos numa padaria cuja proprietária é tão querida que o pão só
pode saber a Amor.
De volta ao campismo tratamos do nosso “mata-bicho” e depois
ainda vamos dar um mergulho na piscina antes de arrumarmos tudo nas calmas para
seguir para Portugal que está agora tão próximo.
Hoje estamos com vontade de demorar o regresso, pois ao cabo
de tantos dias nesta vida livre não sabemos se realmente nos apetece voltar.
Rumamos a Monsanto e no caminho o Pedro leva-me ao Parque
Iconológico de Penha Garcia onde descemos o monte de pedra em pedra até chegar
à Fonte do Pego – uma piscina natural que é uma bênção dos Deuses neste dia
quente de início de setembro.
Não há por ali ninguém, tal como gostamos. É hora do almoço,
mas como nós não temos horas conseguimos apanhar o lugar mesmo ao nosso jeito.
Tomamos um bom banho fresco que nos sabe a SPA de luxo e
depois ficamos algum tempo a secar ao sol para podermos tornar a vestir-nos.
No caminho de volta para o carro aparece-nos o senhor que
toma conta dos Moinhos que se encontram encosta acima e temos o privilégio de
poder apreciar os fósseis e de poder ver o moinho em funcionamento, recordando
como vivia o moleiro com a sua família em tempos idos.
Este senhor trabalha aqui a tempo inteiro e diz que agora no
verão não tem mãos a medir, mas nós ainda estamos numa hora em que aparece
pouca gente. “A maioria vem lá mais para as 4 horas”, diz-nos ele.
Está feliz porque pôde deixar o trabalho que chegou a ter
fora da vila para poder voltar para aqui e fazer algo que realmente o inspira.
Afinal até nos lugares mais remotos há empregos e este senhor gosta também das
suas horas de inverno em que passa muito tempo sozinho à lareira.
Agradecemos-lhe muito pela gentileza da sua visita guiada e
vamos indo para Monsanto – a vila mais portuguesa de Portugal.
Não me lembro de ter visitado este lugar histórico antes. E
adoro. Subimos pelas ruas empedradas, mas depois há mais um grande esticão até
ao miradouro mais cimeiro da vila. Escolho ficar “cá mais em baixo” (ainda que
já bem lá no alto), mirando por entre as pedras e depois sento-me num pedregulho
arredondado e confortável à espera do Pedro.
Passa muita gente a subir e a descer. Alguns fazem como eu e
ficam no sopé do miradouro. É isto que acontece com um casal cuja senhora sobe,
sobe e o marido atrás dela resmunga e diz que vai voltar para o carro e que ela
tem 15 minutos para subir e voltar a descer senão ele vai-se embora sem ela.
Ela, por sua vez, deve estar habituada porque pouco ou nada
lhe liga, continuando a subir como se nada fosse.
Ele começa a descer, a bufar e a sua zanga momentânea
esfuma-se quando é interpelado por uma senhora estrangeira muito tagarela que
lhe pede para por favor lhe tirar uma fotografia.
Ele, sendo um homem que não gosta de ficar mal visto, acede
e faz o seu melhor, pedindo à senhora que se desvie mais um pouco para aqui e
para ali para ficar mais enquadrada.
Nisto a senhora pergunta-lhe se ele não vai subir e ele,
encabulado, lá responde que a mulher dele já foi andando mas que ele estava com
o estômago cheio por isso demora mais um pouco. A senhora estrangeira diz
“temos que nos opor, vá vamos continuar a subir que isto não custa nada” e ele,
para não dar parte fraca, lá vai atrás dela, como se nada fosse. Imagino a
vontade de rir que a mulher dele terá quando o vir a chegar lá acima todo
vermelho e cansado… tendo acabado afinal por seguir os seus passos.
Enfim, os jogos que as pessoas fazem no quotidiano dos seus
relacionamentos é tão cómico quando visto de fora, com simplicidade.
Realmente grande parte das vivências diárias são mesmo
geridas pelas “crianças” e “adolescentes” que cada um tem presos dentro de si,
fruto das memórias retidas ao longo dos anos, mantidas no seu sítio para
proteção – não vá o diabo tecê-las e o “mundo” querer atacar-nos!
Sabe-me tão bem este tempinho aqui quieta, a sentir a paz da
pedra onde estou sentada. As pedras são muito pacíficas. É como a quietude das
árvores, ainda que estas últimas não sejam inanimadas. Tudo na natureza tem a
sua serenidade própria e sinto o Espírito de e em todas as coisas.
Depois de apreciarmos todos os recantos de Monsanto, mais
uma vez o Pedro leva-me a um sítio onde já esteve antes – a Capela de S. Pedro
de Vir a Corça. É um lugar realmente mágico. Tem uma capela do tempo dos
Templários e o silêncio aqui é absoluto.
Assim, plácidos e embevecidos por este retiro aos pés de
Monsanto, aproveitamos para o nosso último lanche antes de chegar a casa.
Enquanto isso chega uma moça com o seu filho de cerca de 5
anos e um bebé. Ela possivelmente não esperava encontrar aqui ninguém, mas
somos sossegados tal como ela.
O menino tem uma bola para brincar com a mãe e o som da
criança feliz faz-nos sorrir.
A Vida é realmente muito bonita e abundante.
Quando arrancarmos daqui sabemos que a próxima paragem é a
casa do Pedro – à minha só chego só amanhã.
O nosso coração de Índios podia viver assim sempre, livre de
compromissos e com os depósitos de criatividade plenos a transbordar de
Alegria, Gratidão, Amor e Harmonia. Mas não. Pelo menos para já há coisas a
fazer, coisas da vida prática que nos requerem e que com a mesma Gratidão vamos
abraçar.
Foi a primeira vez que estive tantos dias longe da minha
filha e apetece-me abraçá-la ainda que não sinta saudades. Não sei já o que são
saudades porque não me sinto triste na ausência de alguém por estar com o
coração tão cheio de Ser sempre. Também vou poder abraçar o meu filho em breve
e vou igualmente adorar.
É tão bom amar sem saudade e poder desfrutar da alegria do
reencontro com a intensidade do Agora, sabendo que mesmo na nossa ausência os
nossos filhos estão bem entregues e que a Vida tem por eles o mesmo carinho com
que nos nutre a nós todos os dias, quando lhe permitimos chegar perto e beijar
a nossa face.
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