Lugar para mais alguém...
Vou aqui sozinha a conduzir pela estrada negra e lisa da via rápida. Traços, traços, traços, passam por mim numa sucessão infinita de possibilidades. Traços, traços, traços brancos à espera de cor. Bebem a vida de quem passa e esperam sempre mais. Passam indiferentes.
É uma manhã bonita de inverno, límpida. Um novo começo. Adoro observar o horizonte enquanto conduzo. O azul do céu clareia à medida que o dia acorda. Primeiro um azul mais escuro. Depois mais intenso, cor de lago.
E eis que o sol surge tímido. Uma ponta da bola de fogo ainda meio ensonada espreita por cima das colinas verdes. Abre os olhos aos poucos, enchendo as escassas nuvens de amarelo rosado, o azul cada vez mais claro.
É tão inocente, o amanhecer. Os campos ainda dormem sob o manto de geada. As casas, uma aqui, outra ali, caiadas de branco, com o rebordo amarelo ou azul, escondem-se do novo dia. Portadas ainda fechadas nas janelas que calam a luz teimosa.
Um dia, quando for velhinha, gostava de acordar todos os dias antes do amanhecer, sentar-me lá fora no meio de um belo jardim, campos verdejantes no horizonte e respirar o raiar de cada novo sol. Deixar-me percorrer pela sua carícia ténue e ganhar alento de mãos dadas com os azuis do céu. Dá-me impressão que viveria eternamente tal como o dia, sempre pronta para recomeçar, sempre com um sorriso terno quem sabe que amanhã… é outro dia.
E nos dias de chuva também não faltaria ao ritual, porque a chuva lava, limpa o mundo e a sua escuridão também fala de amanhãs.
Que dádiva tão bela esta. Apetecía-me já ser velhinha para ter o tempo que me foge e saborear tudo com a calma plácida de quem já não vai a lado nenhum. De quem já viu, já viveu, ouviu e agora apenas observa os pequenos nadas que enchem a vida de cor.
Ah mas a vida bate-me à porta com todo o vigor da juventude. Ainda tenho tanto que aprender. E sou feliz. Adoro viver. Quero viver todos os instantes a que tenho direito, bebê-los, torná-los parte de mim.
O rádio trauteia aquela música “if you leave me now, you’ll take away the better part of me, uuuuu, baby please don’t go”. Pois é, “todos precisamos de alguém”, penso. Todos amamos ou amámos, temos ou perdemos alguém.
Vou aqui sozinha no meu carro de dois lugares. Olho para o espelho retrovisor e vejo o quadriculado da grade que separa os dois bancos da frente da traseira vazia. Faltam assentos lá atrás. Possibilidades de pessoas. A presença acolhedora dos três bancos faz-me falta. Estas carrinhas de dois lugares parecem-me inacabadas, fragmentos de individualismo citadino. O legado economicista de uma sociedade fugidia. Económicas no preço, no consumo e até nas pessoas. Sorrio. A canção continua. Apesar de tudo há ainda um lugar vazio ao meu lado. Há lugar para mais alguém.
Mellissa O'Neill / 2004
Este pequeno trecho foi escrito como início de um romance que bibliográfico que honraria o percurso da minha querida prima Debbie (Deborah) Castilho, falecida aos 38 anos. Esse romance ficará por escrever mas será aqui recordado na sua génese através deste simples reflexo amoroso 💝 Foi através dela que no início de 2004 comecei a minha senda de autodescoberta mais intensamente e a partir daí esse caminho passou a ser o desfolhar fundamental do que vim sucessivamente a descobrir-me Ser. Thank you Debbie 🙏 With all my love 💞
Sem comentários:
Enviar um comentário