“Não há outro”. Estas palavras tornavam-se gradualmente evidentes na sua consciência, sussurrando-se a si mesmas.
Aria deleitava-se, deitada sobre as folhas secas debaixo da gigantesca árvore de pecan que crescia no pedaço de terra a que chamava de lar. As folhas delicadas dos ramos que espiralavam em escadaria rumo ao céu, recebiam da suave brisa a mais leve carícia e Aria deixou-se embalar, até cair num estado de consciência expandida onde de um momento para o outro se viu no preciso início de toda esta sua relação com o planeta Terra.
Ainda um ser etéreo, um Anjo cuja realidade era apenas a eternidade, Ela (utilizaremos aqui o Ela como poderíamos igualmente utilizar o Ele) sentia-se entusiasmada, com um desejo enorme de experimentar algo completamente novo. Um mundo onde Ela própria seria apenas uma parte de si mesma, muitas partes, aliás. Partes que não se lembrariam que eram apenas Um e que iriam explorar os limites desconhecidos do possível. Brincando com a energia de formas nunca antes imaginadas. Revertendo a consciência em toda a sorte de reflexos opostos. Experiências para expandir. Experiências simplesmente por poder experienciar.
De início fora encantador, nunca completamente fixa em forma física, nunca demasiado longe da lembrança do Um que Ela era… Até que caiu. Aria sentiu-se caída da Graça desta experimentação inocente, caída num esquecimento completo.
E eis que se tornou difícil. Sentia-se confinada. Restringida. Sufocada. Tentou alcançar algo que Ela sabia Ser ainda que já não conseguisse defini-lo, mas nada veio em seu auxílio. Nada veio remover Aria desta densidade. Era como se estivesse sob um feitiço que a impedia de voar para dentro e para fora desta realidade, que a impedia de flutuar em alegria e banhar-se de admiração.
O corpo tornou-se um castigo. Os outros já não conseguiam vê-la como docemente inocente e amável. Tal como ela não conseguia ver-se a si mesma.
A vítima emergiu então, nascida da sua sensação de ter sido abandonada por alguém que ela não conseguia identificar mas que tinha a perceção de ser todo-poderoso e eventualmente capaz de a salvar. Teve, por sua vez, que criar o abusador. Aquele que parecia mais forte e menos vulnerável à dor da vítima. Talvez ao ver este Pequeno Eu Humano a ser abusado, o Salvador viesse. E assim Aria começou também a fazer esse papel de Salvador, para poder saber da sua possibilidade até que ele viesse mesmo salvá-la. Assim ansiava ela.
Tudo se ía alinhando ao serviço da sua realidade separada, para que ela pudesse vê-la ao seu redor e acreditar que esta era a única verdade existente.
A raiva tornou-se uma boa amiga e a culpa, a vergonha e a culpabilização depressa vieram juntar-se-lhe. O desespero, a impotência, o desânimo, a frustração, a angústia e a seu tempo a fúria, o ódio e a vingança todos nasceram do solo fértil do abandono e parecia não haver fim para o sofrimento como forma natural de vida.
Aria encontrara muitas avenidas de fuga para sair da consciência do seu próprio corpo e assim poder adormecer um pouco a dor. Mantinha as suas células num limbo de sobrevivência moribundo, nunca demasiado próxima, para não se lembrar… Ainda não. Ser a vítima tornara-se extremamente sedutor.
Isto foi ocorrendo ao largo de muitas vidas, ainda que em alguns pontos cruciais, Aria tivesse tocado no seu Ser inteiro, sentindo-se impelida a reagrupar o que havia ficado disperso. Estes momentos foram todavia passageiros e imprecisos, ficando rapidamente submersos na areia movediça da separação para dar lugar a mais uma quantidade indeterminada de experiência de escassez.
Por vezes, Aria passara a maior parte de uma vida na beatitude de Deus, sentido-o como uma força externa, muito raramente reconhecido como uma parte de si mesma. Estas expressões de vida abençoadas criaram por sua vez uma ânsia. E esta ânsia tornara-se numa busca. E esta busca tornara-se num labirinto de poços sem fundo e becos sem saída. E ela desenvolvera um medo de falhar. Uma certa impressão de estar a fazer algo de errado… Porque senão já teria com certeza encontrado o que buscava e poderia estar agora completamente tranquila.
Aria não tinha noção que não existia a possibilidade de falha. Como é que pode falhar ser o que já se é?
Os espelhos esquivos do que ela não era, mantinham Aria entretida na crença de poder fingir-se algo distinto de si mesma para sempre. Porém, não era isto que queria. Disso tinha a certeza.
Agora Aria chegara ao ponto de apenas querer descansar. Não por uns instantes passageiros. Queria algo que ficasse com ela, nela. Uma paz que fosse infindável e uma experiência que pudesse brotar dessa paz. O que significava, por outras palavras, que o que ela queria mesmo era reunir-se.
O Um que houvera sido esquecido estava a olhar para ela, para a perceção separada de quem ela era, dando-lhe as boas vindas, sorrindo amorosamente, completamente ciente da dor por que ela passara, honrando-a na totalidade e convidando-a a entrar no Um sem deixar nada para trás. Tudo o que Aria tivera medo de admitir, revelar, perdoar… Tudo isso era convidado a regressar ao Um e era recebido com gratidão.
De repente Aria via-se cristalizada exatamente no meio. Entre esta Unidade compassiva que era inteira e as multidões de pequenas figuras sofredoras que ela criara, algumas miseráveis, outras cheias de desdém, algumas tão dormentes com a dor que nem sequer se conseguiam mover ou falar… E Aria deu-se conta que tudo isto era ela mas que ainda assim nada era totalmente aceite. Ela era a própria separação. Era a névoa de fumo entre ela e ela mesma.
Como poderia ela trazer-se de volta, toda, inteira?
Como é que este Eu que tinha estado em negação de parte da sombra e de parte da luz poderia parar de negar?
Como poderia tudo isto terminar, de uma vez por todas?
E tornou-se claro que por mais que ela compreendesse, chegara a um ponto em que nenhum entendimento poderia romper a separação.
Aceitação.
Tudo isto era ela. Não havia partes. Não havia lados. Não havia mais nada. E ela não podia errar simplesmente porque não havia nada para falhar!
Aceitação.
A incandescência que brilhava de um lado era a mesma Essência da sombra que gritava do outro, e ela era tudo isto.
A decisão de mergulhar nesta experiência na Terra não fora tomada à sua revelia e sem o seu consentimento ou na sua ausência. De todo. O Um que Ela era escolhera e Aria era intrínseca a este Um.
Não havia quem pudesse ser culpabilizado. Nem a quem pedir justificações. Não havia quem julgar. Ninguém que estivesse fora de si mesma criara todas as suas experiências. Ela era a responsável por ter permitido tudo o que ocorrera, por ter mergulhado e por ter parecido perder-se em tudo isso.
Aceitação.
Ela era responsável por ter expandido o Universo de possibilidades para além de si mesmo e por realçar a sua própria magnificência numa proporção tão ampla que agora tinha dificuldade em reconhecer-se.
Claro! Ela nunca se conhecera assim. Mesmo lá atrás, quando era um Anjo a preparar-se com entusiasmo para descobrir a vida em forma física! O Um para o qual ela estava agora a retornar evoluíra e era agora um novo Um como consequência de todas as experiências vividas do outro lado da fumaça.
Ela não podia voltar a ser o Um que existira antes da sua vinda para a Terra e não podia conhecer no que se tinha tornado sem entrar de novo no Um e descobri-lo - descobrir-se a si mesma.
Nada tinha corrido mal!
Aceitação.
“Não há outro”. Sim. Aria estava agora ciente.
Num ápice de entrega total, a Aria do agora deixou de empurrar os lados para fora ao mesmo tempo que segurava o passado de si mesma… largou tudo e implodiu. Nada. Ninguém. Tudo.
Aceitação suprema.
O chão húmido e macio debaixo de si, a árvore, o céu e ela. Não havia diferença. E no entanto era tudo diferente.
Não há outro.
Afinal dissolver-se não tinha sido assim tão difícil. E não era apenas indolor mas também perfeitamente libertador. O que parecia bastante óbvio neste momento… Como é que ela se tinha forçado a acreditar que perderia algo quando tudo o que havia para ser encontrado estava exatamente onde o deixar ir era permitido?
Sentiu as gargalhadas a borbulhar-lhe pela barriga acima e aceitou que não importava! Não importava para nada!
O riso tornou-se incontido e rebentou em lágrimas conforme o seu coração cresceu para o infinito e a sua Mente ficou vazia. Silenciosa.
O silêncio tornou-se tão imenso que quedou e transmutou simultaneamente tudo o que Aria soubera ser. Até mesmo o seu riso podia coexistir no seio deste silêncio.
Agora restava apenas a sua inteireza.
Encontrei-me nesta Aria! Muito obrigada pela tua permissão de partilha de palavras tão doces e harmoniosas. ❤️
ResponderEliminarMuito obrigada <3 Fico feliz que a Aria te tenha preenchido de Ti
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