Ser isso Mesmo
Tornara-se um homem, o Miguel, um jovem homem. Olhando-se ao espelho, Miguel mirava o seu rosto de 28 anos enquanto ponderava sobre como chegara até aqui, como era estar aqui e o que estaria diante dele daqui para a frente.
Tratava-se de um momento mais ou menos indefinido, em que ele se sentia preenchido, desapegado de qualquer identidade em particular e ainda assim continuava a acreditar que faltava algo para que ele pudesse realmente assumir que todas as suas atribulações e aflições do passado já lá íam e que agora estava a entrar num mundo completamente novo onde nada do que ele conhecera seria igual. Que nada jamais seria igual.
O vasto desconhecido do novo agora. A sua pele estava radiante e saudável e nos seus olhos havia uma vivacidade, um brilho que tinha vindo a crescer ultimamente. Sentia-se muito mais velho que os seus parcos anos e ao mesmo tempo sentia-se como uma criança inocente pronta para brincar para sempre. Mas as brincadeiras que agora se via pronto a encetar, eram de uma natureza diferente das que lhe tinham aguçado a vontade até agora. E era neste preciso ponto que ele tinha tendência para ficar atascado. Havia algo sedutor no ficar com o que era conhecido. Alguma coisa que o agarrava e o trazia de volta para os círculos contínuos de sentir-se menos que o suficiente, não merecedor ou eventualmente não preparado para ser soberano, como o sábio Mestre que costumava visitar periodicamente. Aquele que vivia a alguns quarteirões dali, numa pequena casa com um aconchegado jardim, sem preocupações ou problemas, apenas desfrutando de cada dia com um belo sorriso sabedor plantado no seu rosto a toda a hora. Quase que lhe invejava esta capacidade de ficar nesse estado fluido de simplicidade. Era o que Miguel queria. Queria isso mais do que qualquer outra coisa. Mas parecia que ainda assim não estava pronto.
Por isso decidiu visitá-lo. Talvez ele tivesse alguma coisa para lhe dizer que o ajudasse a alterar este padrão repetitivo em que sempre voltava a cair.
***
E lá estava ele, sentado no seu alpendre, a bebericar uma chávena de chá, enquanto ouvia a canção da natureza junto com o zumbido da cidade que ficava do outro lado do seu jardim. Respirando… e sorrindo.
Apercebeu-se que eu estava um pouco agitado e perguntou “então meu amigo, como tens estado?”
“Bem. Acho eu. Tenho esta estranha sensação de que tudo está bem, bem demais, quase. E depois entro numa espiral de não confiar em mim mesmo para poder estar assim tão bem e encontro sempre uma forma de provar que há algo de errado comigo.”
“Hmmmm”. Disse ele. Sorvendo silenciosamente o seu chá antes de pousar a chávena numa pequena mesa que se encontrava ao lado da sua confortável cadeira.
“Gostarias de fazer uma experiência?” Perguntou-me ele.
“Bem, se isso tornar as coisas mais claras para mim, sim, claro.” Respondi humildemente.
“Todos os dias, experimenta esta rotina de andar às voltas durante algum tempo. Pode ser na tua sala ou lá fora em qualquer lugar. Os círculos podem ser mais estreitos ou mais largos e podem ser quantos quiseres. Tenta simplesmente andar às voltas por um pedaço de tempo, todos os dias. Círculos completos. E vê o que isso te traz.”
Olhei para ele, um pouco perplexo, sem compreender realmente qual seria a utilidade daquilo, mas uma vez que ele era definitivamente um Mestre e eu confiava tanto nele, aceitei o desafio.
***
O Miguel agradeceu a Tobias e despediu-se, ainda não inteiramente convencido acerca desta pequena experiência.
Começou naquele mesmo dia, durante um passeio no parque, dando algumas voltas ao lago e tentando ficar atento ao que sentia.
Cada dia repetia este exercício de andar às voltas, por vezes em casa, e outras na rua, umas vezes fazia círculos mais largos e outras mais estreitos. E começou a notar algumas coisas. A familiaridade parecia reconfortante. Ainda que fosse uma coisa vazia em si mesma, sabia bem ter a noção que acabaria onde começara uma e outra vez e era bom saber onde colocar os pés e como seria o caminho. Era estranhamente hipnótico e enquanto andava obedientemente às voltas nestes círculos repetitivos, a sua mente tinha rédea solta para criar todo o tipo de pensamentos, falando a bandeiras despregadas, como se quisesse fazer-lhe companhia no seio desta trajetória aparentemente aborrecida e repetitiva.
O conforto pedia desconforto, tornando-se mais sedutor criar algum tipo de evento que lhe incendiasse a adrenalina, algures no seu circular ou noutro qualquer momento do dia, só para apagar aquela sensação de mesmice.
Começou a ver séries dramáticas e a andar pela cidade no sentido de encontrar algum tipo de excitação que quebrasse a torpor de sentir-se embrutecido por fazer a mesma coisa todos os dias.
Começou a sentir-se tolo e estranho e ansioso. Mas não eram as voltas propriamente ditas. Elas não eram nada em si mesmas. Eram apenas círculos. Nada para descobrir. Era ele. Como ele se sentia dentro de si mesmo. Por um lado confortável e de certa forma seguro, mas por outro querendo mais do que apenas isto e duvidando ser capaz de se tornar algo mais do que ele achava não ser grande coisa.
Deu-se conta que esperava qualquer coisa. Nem sabia o quê. Algo que tinha que ser melhor, ou ele próprio que deveria ser mais merecedor, mais válido talvez. Mais grandioso… seria? Algo que poderia qualificar de mágico. Mas isto levantou a questão: o que é mágico, então?
Foi ter com o Mestre e partilhou o que sentia.
***
“Não consigo perceber o que falta.”
“E se não faltar nada? E se decidires sair das voltas a meio caminho? Ou se entrares para o meio do círculo? Ainda precisarias de regressar para completá-las? Acharias que há alguma imperfeição com o não completar de um círculo sempre e todas as vezes?”
“Não sei. Não tenho a certeza de quem sou ou de quem devo ser e o que vou encontrar se começar a quebrar os círculos a meio e nunca mais voltar para os completar. Não sei como vai ser a vida sem que me sinta inseguro dos meus passos, sem o conforto dos círculos e a necessidade de criar desconforto por causa deles. Até mesmo ir para o centro do círculo e ficar lá… Hmmmm, apenas ali. Se me tornar seguro e confiante, firme na minha sabedoria e me render por completo à minha inteireza, não vou estar preso, e isso parece assustador neste momento. Parece demasiado vasto… demasiado grandioso… Ah!!! Se calhar é desta grandiosidade que estou à espera?! É isso que tenho medo de permitir!”
“Talvez seja. Porque é que não vais experimentar por algum tempo para veres como sentes estas experiências fora dos círculos habituais?”
“Sabes, olho para ti e pareces tão pleno. E no entanto a tua vida é absolutamente simples. E eu gosto disso. Gosto do que vejo em ti e adoro estar na tua Presença, mas não tenho a certeza se isto chega para mim…”
“A pergunta é, na verdade, se tu és o suficiente para ti?”
***
Com um sorriso, o Miguel olhou Tobias nos olhos, com os seus marejados de lágrimas e eis que percebeu, no fundo do seu coração, como uma tocha a incendiar a chama olímpica. Ele era isso mesmo. Agora.
Texto por T. C. Aeelah
Foto por Agnese Lunecka - Pexels
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